CONTAS À VISTA

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Sempre tive a convicção de que nós, brasileiros, adoramos um fundo. Temos fundos para tudo – defesa dos Direitos Difusos, Participação de Estados e de Municípios, Criança e Adolescente, Idoso, Exportações, e por aí vai. Nem mesmo o Governo Federal sabe ao certo quantos são. Lê-se na Justificativa da PEC 187, de iniciativa do Ministro Guedes, que o mecanismo nela previsto possibilitará a extinção de "cerca de" 248 fundos. Se aprovada, a PEC permitirá "a desvinculação imediata de um volume apurado como superávit financeiro da ordem de R$ 219 bilhões, que poderão ser utilizados na amortização da dívida pública da União".

Fundos são regulados pelos artigos 71 a 74 da Lei 4.320/64 e se configuram como instrumentos importantes e úteis de direito financeiro que, a depender de seu uso, podem ser bons ou maus. São importantes porque se caracterizam como a agregação de determinado valor para ser usado em uma finalidade específica, ou seja, tornam a gestão orçamentária mais fácil, vinculando certa quantidade de dinheiro para ser usada nos objetivos traçados por lei.

E são úteis porque, como regra geral, se o montante não tiver sido gasto integralmente em um ano, o saldo positivo deverá ser transferido para o exercício seguinte, a crédito do mesmo fundo — simplificando: não precisa gastar tudo em um único exercício, sob pena de perder os recursos, o que ocorre com muitos outros recursos orçamentários (conforme expus em outra coluna). Só para se ter uma ideia da importância e utilidade desse mecanismo financeiro denominado fundo: ao mesmo tempo em que é apresentada uma PEC para extinção de todos os fundos, é sancionado um aporte de recursos no valor de R$ 2 bilhões para o fundo eleitoral, para ser gasto nas eleições de 2020.

Se tais fundos são importantes e úteis, por qual motivo o Poder Executivo federal propôs a PEC 187 para acabar com eles? Para responder a esta questão central deve-se compreender alguns aspectos sobre a dinâmica a eles aplicada.

A fantástica quantia de R$ 219 bilhões acumulados nestes fundos decorre de:

1) Em face da vinculação entre uma receita e o fundo, toda vez que aquela receita ocorrer, aumentará a grana do fundo;

2) O Poder Executivo federal (os anteriores e o atual) não deixa o gestor do fundo gastar, mesmo havendo dinheiro, pois o contingencia, isto é, efetua "limitação de empenho e movimentação financeira" (artigo 9º, da LRF, Lei Complementar 101/00), tendo por foco o pagamento da dívida pública;

3) A consequência econômica é que numericamente o dinheiro se acumula; a consequência política é que o gestor é carimbado como incompetente, pois alegadamente não consegue gastar, embora, juridicamente, esteja impedido de fazê-lo. Caso aprovada a extinção dos fundos, o montante acumulado vai virar pó, revertido para o pagamento da dívida – o que já ocorreu. Logo, a consequência contábil será a de zerar os saldos e começar vida nova, desvinculando a receita às finalidades estabelecidas.

Logo, se o Poder Executivo (de ontem e de hoje) tivesse permitido o gasto, o montante acumulado seria bastante menor, ou talvez sequer existisse; porém a dívida pública seria maior. Trata-se de uma escolha orçamentária que cabe ao Poder Executivo, que, embora amparada em lei, frustra as deliberações do Poder Legislativo.

Exatamente em razão das características acima apontadas é que existe uma busca desenfreada por um fundo para chamar "de seu". Foi o que ocorreu com o Ministério Público Federal do Paraná que, capitaneado pelo procurador Deltan Dallagnol, tentou criar um fundo para chamar "de seu" no montante de R$ 2,5 bilhões, o que foi combatido pela então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, com o que concordou o plenário do STF, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Morais (ADPF 568). O fato é que este caso se destacou, porém muitos outros podem ser identificados. Diversos membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público já dirigiram as verbas de algum fundo para atividades específicas, todas meritórias, porém realizadas à margem do legislador orçamentário – isto é, do conjunto do Poder Legislativo e do Poder Executivo, de qualquer nível federativo.

Se os alegados liberais do atual governo estivessem realmente atentos, teriam argumentado que o debate está inserido na liberdade do legislador orçamentário, isto é, na liberdade que cada governo eleito possui de estabelecer as prioridades políticas em face das convicções pelas quais foi eleito (embora isso seja estupidamente difícil de identificar em concreto) e a quantidade de recursos disponíveis para fazer frente a tais prioridades. Logo, teoricamente, os recursos devem estar livres para que o governo eleito determine no que deve gastar os recursos arrecadados. Esta é a ratio da primeira parte do artigo 167, IV, CF.

Porém, essa consideração teórica foi bloqueada pela Constituição de 1988, que estabeleceu algumas prioridades com recursos carimbados, isto é, vinculados. E isso, aparentemente, está sendo respeitado pela PEC 187, pois em sua justificativa afastou da extinção os fundos que possuem amparo constitucional, como os Fundos de Participação dos Estados e Municípios, bem como o FUNDEB (que tem prazo certo de vigência até o final de 2020) e o Fundo Nacional de Saúde.

Para dourar a pílula da PEC, e ver se ela passa mais fácil pela análise do Congresso e da sociedade, afirma-se que o montante que deixar de ser vinculado aos fundos poderá ser usado para a erradicação da pobreza, finalidade que, por si só, já é objeto de um fundo constitucional (artigos 79 a 83, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Ora, usar o verbo de forma condicional (poderá) ou, em vez disso, no imperativo afirmativo (deverá), já aponta para o esvaziamento da pretensão normativa. Trata-se de uma promessa para inglês ver.

O fato é que existem problemas na gestão desses fundos. Excelente reportagem de Marcos de Vasconcellos, nesta Conjur, indica diversos problemas na gestão do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, o que poderia ser projetado para vários outros. Porém, ao invés de propor consertos ou melhorias, o governo atual propôs a extinção de todos os fundos, o que é um erro, sob meu ponto de vista. Afinal, devemos aperfeiçoar o que está errado, mas não destruir um modelo que deu bons resultados nestes 30 anos da Constituição de 1988 — embora 165 fundos sejam anteriores a 1988, conforme exposto na Justificativa da PEC 187.

Este problema pode ser identificado através do método que foi adotado. Propõe a PEC 187 a extinção de todos os fundos que não forem confirmados por lei complementar, no prazo de dois anos após sua aprovação. Ou seja, a inércia dos Legislativos de cada nível federativo acabará por liberar todos esses recursos para uso pelos Poderes titulares de cada fundo (artigo 3º, parágrafo 2º, PEC 187). A tentação do toma-lá-dá-cá será enorme. Recursos hoje alocados ao Ministério Público do Estado "X" poderão ser confirmados por lei complementar estadual, em face do poder de convencimento desse órgão (ou Poder) em face do Legislativo; porém no Estado "Y" isso pode não acontecer, e os recursos seriam liberados para pagamento da dívida pública estadual. Seguramente, quem tiver maior poder de pressão conseguirá mais vantagens – e tudo isso sem a regulamentação da profissão de lobista (ou, para usar a expressão da moda, do agente de relações governamentais). O campo estará aberto para os mais diferentes tipos de pressão, legítimos e ilegítimos — a conferir.

O fato é que mesmo nos Ministérios haverá uma encarniçada disputa por verbas orçamentárias, conforme aponta Floriano de Azevedo Marques.

O ideal seria uma revisão individualizada de cada fundo e a adoção de medidas para seu aperfeiçoamento, descartando seu uso para o pagamento da dívida pública. Tal pagamento deve ocorrer, mas por meio de expressa previsão orçamentária, e não pelo mecanismo de superávit financeiro, que esconde a previsão exata de quanto deve ser pago, operando através de contingenciamento para chegar ao montante anual a ser desembolsado (que é estabelecido pela Lei de Diretrizes Orçamentárias, e se torna obrigatório por força do famigerado artigo 9º da LRF).

Desconheço o motivo pelo qual o governo não adota tal procedimento, mas tenho uma suspeita: adotar o método reformista seria uma medida gradualista, o que não traz impacto midiático, e vai contra a ideia de refundação da república, que está presente nos atos, palavras, gestos e documentos do atual governo. Só extinguindo o que existe, mesmo que esteja funcionando bem, ou de modo razoável, é que se refunda algo, e não o consertando.

Será que nosso país está mesmo precisando dessa overdose de reconstrução nacional ou haverá muita coisa aproveitável no que já foi feito nos 520 anos de ocidentalização, quase 200 anos de independência formal e 130 anos de república proclamada? Afinal, até aqui chegamos a ter alguma relevância econômica mundial ao lado da China, Índia, Rússia e África do Sul, mirando níveis mais altos de qualidade de vida, como o dos países desenvolvidos. Será mesmo necessário refundar a república como vem sendo proposto? Ou serão suficientes alguns ajustes, que seguramente se fazem necessários? 

 é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

Revista Consultor Jurídico