OPINIÃO

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Há 32 anos o Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído na Constituição da República (CR) para garantir ações e serviços de saúde para a população e assim cumprir o direito à saúde previsto em seu artigo 196.

A reforma sanitária que se fazia presente no país desde os anos 70 e que propugnava por um novo modelo de assistência à saúde pelo esgotamento do Sistema Nacional de Saúde, Lei n. 6.229, de 1975, e do Sistema Nacional de Previdência Social, Lei n. 6.439, de 1977, por não atenderem as necessidades coletivas de saúde.

Do Piass à AIS e da AIS ao SUDS [1], chegou-se ao SUS, um sistema que resulta da integração das ações e serviços de saúde de todos os entes federativos, organizados em rede regionalizada (região de saúde) e hierarquizada (nível de complexidade de serviços). Sua organização e seu funcionamento são descentralizados, com direção única em cada esfera de governo, num federalismo cooperativo.

Em 1990, com a edição da Lei n. 8.080, iniciou-se na prática a organização do SUS, com a transferência do Instituto Nacional Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) para o Ministério da Saúde. Em 1993, com a sua extinção, iniciava-se, de fato, a instituição do SUS.

Foram anos de efervescência no Ministério da Saúde e nos municípios, com a vigorosa participação do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e do Conselho Nacional de Secretários Estaduais da Saúde (Conass) para promover a descentralização das ações e serviços de saúde do Inamps para os entes federativos subnacionais, iniciada pelo SUDS em 1987.

O Estado de São Paulo foi um exemplo na participação do que se denominava municipalização da saúde, com a sua Secretaria de Estado da Saúde em franca ebulição. Época de fortalecer a atenção primária em saúde, com o programa Saúde da Família; de criar o programa dos agentes comunitários de saúde; criar as comissões intergestores de saúde; possibilitar juridicamente as transferências federais fundo a fundo; e muitos outros novos institutos administrativos, ainda que falar em Direito Sanitário soava como algo a não ser levado a sério.

Quem não compartilhava desse mesmo entusiasmo era a área econômica do Governo Federal. Essa negação deu inicio a uma saga em busca do financiamento adequado do SUS, hoje um dos principais objetos de estudo da economia da saúde, que muito se deve a Gilson Carvalho e Elias Jorge, dois, entre muitos outros, que se destacaram na articulação e nos estudos para embasar a luta da sociedade para a garantia de recursos suficientes, e, por atuarem nos anos 90 no Ministério da Saúde, enfrentaram luta cotidiana pela garantia de recursos suficientes para o SUS.

Do descumprimento do disposto no artigo 55 do ADCT à DRU (Desvinculação de Receitas da União), da segregação de fontes da seguridade social exclusivamente para a previdência (EC 20, de 1998), da revogação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que retirou da saúde R$ 40 bilhões em 2007 [2], do não repasse pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) ao Ministério da Saúde (MS) dos recursos das contribuições sociais da seguridade por cem dias; da conversão da URV para o real, com grande perda para a saúde, e da EC 95, de 2016, o último prego na cruz.

Um SUS nunca mostrado em suas fortalezas nas mídias sociais: serviços de saúde em 5.570 municípios e 27 estados; serviços de vigilância sanitária, epidemiológica, ambiental; saúde indígena; conselhos de saúde em todos os entes federativos; comissões intergestores; bilhões de procedimentos anuais; sistema de transplante; medicamento para doenças raras; serviços odontológicos; medicamentos para hemofílicos e portadores de HIV; imunização coletiva. Tudo isso com a regressiva participação da União no orçamento global da saúde (dos três entes federativos), que em 2000 era de 59,8% e em 2018, 44,7% [3], com um gasto per capita-ano de R$ 630; com asfixia do orçamento municipal, que passou a ter que arcar com responsabilidades pelas políticas de saúde sem os recursos correspondentes, tendo que aplicar anualmente 26% de suas receitas quando a lei determina 15%; tendo aplicado o valor de R$ 31 bilhões em 2019 para além dos valores mínimos obrigatórios.

A EC 95, de 2016, retirou em dois anos (2018 e 2019) R$ 17,6 bilhões, que, somados à estimativa da perda de 2020, totaliza R$ 22,5 bilhões; fez elevar o valor dos restos a pagar em mais de R$ 20 bilhões. Só nessa conta são R$ 42,5 bilhões retirados da assistência à população desde 2008 [4].

O complexo industrial da saúde não tem recebido investimentos necessários ao seu desenvolvimento, escancarada com a pandemia da Covid-19 a dependência do SUS de inúmeros insumos, produtos e medicamentos adquiridos no mercado externo, com risco até para a proteção de profissionais de saúde. Nunca foram priorizados investimentos em ciência e tecnologia, conforme se vê na entrevista de Carlos Gadelha [5]; os laboratórios públicos foram enfraquecidos; a produção própria de medicamentos foi penalizada com o fechamento de fábricas públicas; o não alcance tecnológico da interoperabilidade dos registros eletrônicos em saúde, prometido e não cumprido há mais de 20 anos. Com profissionais mal remunerados e sujeitos a todo tipo de vínculo de trabalho e o endeusamento da pejotização; profissionais de saúde não valorizados e sem planos de carreira.

Vender, privatizar, transformar o SUS num sistema focalizado para atendimento das pessoas pobres; diminuir os serviços públicos em prol da rede complementar privada tem sido política defendida por muitos e também por alguns organismos internacionais.

Até que, em 2019, nessa sociedade do espetáculo e do mercado como deus, um vírus invisível a olho nu deita por terra muitas crenças econômicas; a tecnologia como substituta do ser humano e passa a dar visibilidade ao invisível, entre eles, ao SUS brasileiro, o patinho feio, o sofrido sistema de saúde, um sistema universal que valoriza a vida, tão mal falado na mídia, negado pelos economistas que rezam a cartilha da austeridade fiscal e da privatização do Estado.

Agora as mídias começam a elevar o SUS à sua verdadeira categoria: a que salva vidas; que atende 210 milhões de pessoas; que realizou 3,2 bilhões de procedimentos ambulatoriais em 2018; que está presente com todas as suas dificuldades no atendimento da doença do novo coronavírus, orientando e passando segurança sanitária; assim, de repente, o patinho feio passou a ser visto com outros olhos porque a sociedade está a dele depender.

Mas não basta olhar o SUS nesse momento de pandemia. É preciso olhar o seu futuro e para isso deve-se retroceder 32 anos de suas lutas, de suas agruras; o sofrimento dos gestores públicos que até os dias de hoje passam o ano a enfrentar a falta de leitos hospitalares ante a sua diminuição em mais de 30% entre 2009 a 2018; as cirurgias não realizadas em tempo oportuno; a dengue, epidêmica e endêmica; pessoas com câncer aguardando exames e quimioterapia. Isso faz com que os municípios elevem cada vez mais a sua participação no financiamento. Mesmo assim, diante de tantos reveses, o SUS, heroicamente, fez e faz milagres com seus parcos recursos.

Chegou o momento de o SUS deixar de ser o patinho feio para de fato e de direito ser valorizado pelo bem que protege, a vida humana, e de enfrentar um estado de coisas inconstitucionais que há na saúde desde o seu nascimento, que aumenta na mesma proporção que aumentam as necessidades de saúde das pessoas, como se pode ver pela sua intensa judicialização, sem que suas causas sejam enfrentadas.

Se o artigo 55 do ADCT tivesse sido cumprido, o valor dos recursos da União aplicados em saúde seriam R$ 275,5 bilhões, e não R$ 122,3 bilhões. Se não houvesse a DRU; as perdas de 1990 e as de 1993; as da URV quando se converteu o orçamento federal da saúde em real; as da CPMF; e, agora mais do que nunca, as da EC 95. Na pós-pandemia, como diz Tatiana dos Prazeres [6], o maior ativo do Estado será a sua capacidade de ação e ela deve se voltar para o SUS, definitivamente, além de para outros setores que escancaram a sua indecência, como a falta de saneamento, a informalidade das relações de trabalho, a pobreza, o subemprego. É preciso pensar e fazer diferente. Não há mais espaço para o desdém com o SUS e demais politicas públicas sociais.

É preciso despertar para a natureza de cisne do SUS e para o sentimento de pertencimento da população, necessário para o exercício de sua preciosa vigilância social.  Sem o SUS, a pandemia da Covid-19 seria um genocídio sanitário.

 

[1] PIASS: Programa de Interiorização das Ações e Serviços de Saúde; AIS: Ações Integradas de Saúde; SUDIS: Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde.

[2] Isso para não se falar no seu redirecionamento para áreas que não as da saúde, logo após a sua aprovação, o que levou Adib Jatene a deixar o Ministério da Saúde.

[3] Estimativas de Sergio Piola et al. Financiamento Público da Saúde: uma história a procura de rumo. IPEA, 2013. Dados atualizados para 2018 por Francisco Funcia.

[4] Sem falar dos recursos do présal incluídos no piso da saúde pela EC 86, de 2015, quando originalmente era um valor adicional. Vide ADI 5595, de 2016.

[5] Gadelha, C. Opção pelo atraso. Carta Capita, de 15.4.2020.

[6] Prazeres, T. EU adoece com a pandemia. Folha de S. Paulo. Mundo, 10.4.2020. 

 é advogada, professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

Revista Consultor Jurídico