É preciso entender o método de análise – a ciência construída por Marx e Engels –, para desenvolver permanentemente a teoria, sempre em diálogo profundo com as demais ciências

Na primeira parte deste artigo – que tenta apontar a contribuição teórica mais original de Marx e Engels –, expliquei por que a ideia de socialismo/comunismo, de igualdade futura, não foi o grande legado marxista. Na realidade, a contribuição mais importante dos fundadores do marxismo foi a ciência social que compõe o centro do seu pensamento e da sua obra.

Essa ciência social é ancorada em uma inovação de gigantesca envergadura filosófica, configurada no método de análise investigação dos fenômenos de todo tipo – o materialismo histórico-dialético. Partindo da dialética hegeliana – que era idealista –, Marx e Engels, nas palavras deles próprios, inverteram o método e puseram a filosofia de Hegel de cabeça para baixo.

Eles partiram da percepção de que é na vivência do mundo material que produzimos as nossas ideias. É a organização econômica, social e política – a nossa posição dentro de uma determinada sociedade, independentemente do tempo-espaço – que orienta e estrutura nosso modo de pensar, de ser, de agir, em interação dialética. Somos produtos do “meio e, dialeticamente, produzimos o nosso meio”.

Com esse método em mãos – o materialismo histórico-dialético –, Marx e Engels passaram a analisar o desenvolvimento humano, em especial o capitalismo e mesmo o funcionamento da Natureza, em obras espetaculares. Foi o caso de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado e A Dialética da Natureza, de Engels; Luta de Classes na FrançaA Burguesia e a Contrarrevolução e, especialmente, O Capital, de Marx; além das obras conjuntas, como O Manifesto Comunista e A Ideologia Alemã.

Nesses trabalhos, os dois autores desenvolveram essa nova, genial e revolucionária forma de analisar a sociedade. É daí que brotam as análises “radicais” (que vão às raízes dos problemas) do marxismo. É daí que surgem as mais originais análises do pensamento marxista (a partir de Marx-Engels e de um conjunto amplo de pensadores que seguiram seus passos):

  1. A profunda relação/interação dialética entre infraestrutura econômica (modo de produção, funcionamento da economia e as relações de produção) e a superestrutura (a cultura, leis, moral, funcionamento do Estado, etc.);
  2. A permanente luta de classes nas sociedades hierarquizadas, derivada da existência da propriedade privada sobre os meios de produção, conformando, portanto, uma classe dominante exploradora e também classe(s) submetida(s) à profunda exploração do seu trabalho, independentemente do tempo e espaço. A dinâmica entre trabalho coletivo e exploração sobre a massa trabalhadora cria contradições objetivas em quaisquer sociedades assim organizadas. Essas contradições tendem a gerar disputas, tensões, lutas pelo poder, revoltas, rebeliões, insurreições, revoluções;
  3. A análise sobre as transições históricas, entre modos de produção (um dos elementos centrais da dialética marxista), entendendo que que não há saltos diretos entre um modo de produção e outro (entre comunismo primitivo e escravismo; entre escravismo e feudalismo; entre feudalismo e capitalismo; entre capitalismo e comunismo e entre outros modos de produção que possam ser identificados no passado, especialmente). Por isso, Marx e Engels estabeleceram o socialismo como uma longa, complexa e contraditória luta entre as forças que querem estabelecer o comunismo e as forças que defendem a sobrevivência do capitalismo. Socialismo, portanto, é uma transição que comportará transições dentro da Transição e não se dá em linha reta. Entra aí, de modo muito efetivo, a observação do materialismo histórico e dialético para compreender as transições históricas e a própria transição capitalismo-comunismo, como luta brutal entre forças contrárias, luta entre o velho e o novo – e como, na construção da nova sociedade, ao longo da história, sobrevivem características da velha sociedade, mas com o desenvolvimento de novas características;
  4. A análise central sobre o capitalismo, seus mecanismos estruturais de funcionamento e exploração sobre a força de trabalho, sobre o proletariado, suas contradições insolúveis, apontando ainda (à época da produção teórica de Marx e Engels) que ele tendia a desenvolver novos mecanismos voltados para a cumulação de capitais. Manejando o materialismo histórico-dialético, ambos, especialmente Marx, enxergavam o capitalismo como um modo de produção e/ou formação social que vivencia uma permanente “contradição em processo”.

Com base nesses elementos essenciais, brotaram as indicações, orientações e defesa da necessidade de que o proletariado, como classe que compreende a exploração à qual é submetido (classe em si e para si), se organize em força política revolucionária para conduzir a disputa pelo poder político com a burguesia. Só assim os proletários terão condições de assumir o comando do Estado e iniciar a construção do socialismo, superando historicamente as contradições do capitalismo, preparando, para o futuro, a sociedade comunista.

E o socialismo precisa ser entendido como o longo período histórico de construção de novas relações econômicas baseadas na propriedade coletiva sobre os meios de produção, em enorme desenvolvimento das forças produtivas, com base em inovações tecnológicas que possibilitem extraordinários níveis de produtividade, em novas relações sociais, novos padrões de cultura, de moral, de vida, etc.

A conjugação entre concepção de mundo, método de análise e interpretação da realidade – e, em especial, do capitalismo – é a mais magnífica contribuição do marxismo. Marx e Engels foram homens do seu tempo. Em muitos momentos, isso se refletia no modo de pensar de sua época e cultura. A obra que deixaram precisa ser analisada como uma construção histórica que evoluiu conforme eles próprios foram desenvolvendo seu método de análise e as propostas para a superação do capitalismo.

Digo isso porque é comum, à direita (mas não apenas), uma dissecação malandra dos escritos de ambos, descontextualizando-os (considerando o caráter evolutivo de uma obra que se desenvolveu por cerca de 50 anos!). Não eram profetas e, óbvio, não se propuseram a responder a todas as perguntas e angústias das lutas sociais. De lá para cá, novos e numerosos fenômenos econômicos, políticos, sociais, culturais e ideológicos surgiram. Não vamos encontrar em seus livros respostas universais, como se fossem a Bíblia ou o Corão, que dão as mesmas respostas para tudo de modo atemporal, o que exige dos seus respectivos crentes fé – e não análise concreta da realidade concreta.

Quando entendemos o método de análise – a ciência construída por Marx e Engels –, aí sim, temos a nossa atemporalidade em sua plena exuberância. Compete-nos compreendê-lo e aplicá-lo, desenvolvendo permanentemente a teoria, sempre em diálogo profundo com as demais ciências.

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