Notadamente, a Negociação Coletiva é ferramenta a ser utilizada para criação de novos benefícios e direitos, mas também deve ser lançada em situação de dificuldade econômico-financeira, como será demonstrado adiante.  

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1. Direito coletivo do trabalho e a negociação coletiva

Para o presente estudo, faz-se fundamental tecer alguns comentários sobre a Negociação Coletiva, talvez principal instituto do Direito Coletivo do Trabalho, que tende a ser utilizado na solução de conflitos trabalhistas, de caráter plúrimo ou coletivo.

Antes, contudo, cabe trazer as palavras do ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Maurício Godinho Delgado (2018), que define o Direito Coletivo do Trabalho como:

(...) o complexo de institutos, princípios e regras jurídicas que regulam as relações laborais de empregados e empregadores e outros grupos jurídicos normativamente especificados, considerada sua ação coletiva, realizada autonomamente ou através das respectivas entidades sindicais.

Esse complexo, dito por Godinho, que regulamenta as relações laborais de forma autônoma ou por meio de ente sindical, possui significativa importância no Direito do Trabalho pátrio. Especialmente, acerca da Negociação Coletiva, cabe destacar que o texto constitucional prescreve em seu artigo 7º, XXVI, o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”.

Verifica-se, portanto, que o intuito é de elevar o patamar da Negociação Coletiva a um direito social assegurado aos trabalhadores, dada a sua importância e relevância.

Notadamente, a Negociação Coletiva é ferramenta a ser utilizada para criação de novos benefícios e direitos, mas também deve ser lançada em situação de dificuldade econômico-financeira, como será demonstrado adiante.

2. A Organização Internacional do Trabalho e a negociação coletiva

Analisado brevemente o aspecto constitucional e doutrinário da Negociação Coletiva, cabe dizer que no âmbito do Direito Internacional do Trabalho há grande preocupação por parte da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em estimular o diálogo entre empregados e empregadores, para construção da Negociação Coletiva.

A convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1952, em seu artigo 4º prescreve o seguinte:

Art. 4º — Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.

Da mesma forma, visando estimular a Negociação Coletiva, a Convenção 154 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1992, prevê em seu artigo 5º:

Art. 5º — 1. Deverão ser adotadas medidas adequadas às condições nacionais no estímulo à negociação coletiva.

2. As medidas a que se refere o parágrafo 1 deste artigo devem prover que:

a) a negociação coletiva seja possibilitada a todos os empregadores e a todas as categorias de trabalhadores dos ramos de atividade a que aplique a presente Convenção;

b) a negociação coletiva seja progressivamente estendida a todas as matérias a que se referem os anexos a, b e c do artigo 2 da presente Convenção;

c) seja estimulado o estabelecimento de normas de procedimentos acordadas entre as organizações de empregadores e as organizações de trabalhadores;

d) a negociação coletiva não seja impedida devido à inexistência ou ao caráter impróprio de tais normas;

e) os órgãos e procedimentos de resolução dos conflitos trabalhistas sejam concedidos de tal maneira que possam contribuir para o estímulo à negociação coletiva.

Ainda, a convenção 154 da OIT, ao discorrer sobre o conceito de “negociação coletiva”, em seu artigo 3º, esclareceu que:

Art. 3º — Para efeito da presente Convenção, a expressão ‘negociação coletiva’ compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com fim de:

a) fixar as condições de trabalho e emprego; ou

b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou

c) regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.

Pela leitura das convenções acima, verifica-se claramente que a utilização do Direito Coletivo do Trabalho (e como consequência, da Negociação Coletiva), como forma de solução de conflitos, tornou-se ainda mais abrangente, sendo mecanismo indicado para “fixar as condições de trabalho e emprego”, bem como “regular as relações entre empregadores e trabalhadores”.

3. A negociação coletiva na CLT, “flexibilização trabalhista negativa” e o princípio da adequação setorial negociada.

Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 611-A, inserido pela Reforma Trabalhista (lei 13.467/17), estabelece de forma especial a validade da Negociação Coletiva, inclusive, em prevalência à lei, desde que observados os limites ali estabelecidos.

Considerando a prevalência sobre a lei, sempre surge a seguinte indagação: “É possível utilizar a negociação coletiva, para reduzir direitos?”. Em situações assim, merece atenção especial a “flexibilização trabalhista negativa”.

Para melhor esclarecer a “flexibilização trabalhista negativa”, há de se estabelecer que o viés constitucional de reconhecimento da negociação coletiva (artigo 7º, XXVI, CF/88) pressupõe a melhoria de condição social dos trabalhadores (artigo 7º, caput, CF/88) como requisito para seu reconhecimento e, via de consequência, sua validade.

Contudo, existem momentos históricos em que há necessidade de adequação rápida a uma nova realidade nas relações de trabalhado, influenciada por diversos fatores, tais como a pandemia da covid-19, que, invariavelmente, acarreta dificuldade econômico-financeira.

Acerca desses momentos de “recessão”, Canotilho (2003), assevera:

A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fática), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.

Neste viés é que reside a possibilidade de “flexibilização negativa”. Veja que ainda assim são observados os parâmetros constitucionais, privilegiando a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana, quando se põe em prioridade a manutenção dos postos de trabalho.

Ainda no que tange à “flexibilização negativa”, Maurício Godinho Delgado (2018) explica que a sua validade deve se restringir a parcelas de indisponibilidade relativa:

Já no segundo caso (quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa - e não de indisponibilidade absoluta) o princípio da indisponibilidade de direitos é realmente afrontado, mas de modo a atingir somente parcelas de indisponibilidade relativa.

As definições trazidas pelo ilustre ministro se baseiam, como fundamento jurídico, no Princípio da Adequação Setorial Negociada, que é tratado da seguinte forma:

Pelo princípio da adequação setorial negociada as normas autónomas juscoletivas construídas para incidirem sobre certa comunidade econômico-profissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados.

Verifica-se, por fim, que a validade da autocomposição coletiva, no sentido de “flexibilização negativa”, encontra amparo em situações excepcionais e extraordinárias, abarcadas em instrumento coletivo de trabalho, mas estando amparado por princípios e normas de caráter constitucional, a fim de observá-los como requisito de sua validade e possibilidade jurídica, pelo que devem incidir única e exclusivamente sobre parcelas de indisponibilidade relativa, a fim de preservar também a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana, tal qual prevê o Princípio da Adequação Setorial Negociada.

4. Direito coletivo do trabalho e negociação coletiva na pandemia da covid-19

As medidas editadas pelo Governo Federal para minimizar os impactos da pandemia da covid-19 no Brasil foram, inicialmente, adotadas por via de medida provisória (927 e 936), que já tiveram prazo de sua vigência esgotado e, por isso, não serão tratadas no presente estudo.

Contudo, recentemente foi editada a lei 14.020/20, que instituiu o Benefício Emergencial de Manutenção de Emprego e Renda (BEM), bem como adotou outras medidas, anteriormente previstas na MP 936.

Por tratar-se do foco deste estudo, serão abordadas apenas as medidas que envolvem Direito Coletivo do Trabalho, que demonstram o direcionamento no Brasil para a fomentação à negociação coletiva.

A lei 14.020/20 consolidou a redução de salário e jornada proporcionais, bem como a suspensão do contrato de trabalho, tudo em virtude do estado de calamidade pública decorrente da pandemia da covid-19.

Cabe destacar que as medidas previstas em lei possuem validade mediante a negociação individual com os empregados, bem como a possibilidade de intervenção sindical que provoque a instauração de negociação coletiva.

Inicialmente, tratando-se da redução de salário e jornada proporcionais, o legislador trouxe a possibilidade de que a redução se dê de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho:

Art. 7º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º desta Lei, o empregador poderá acordar a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário de seus empregados, de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho, por até 90 (noventa) dias, prorrogáveis por prazo determinado em ato do Poder Executivo, observados os seguintes requisitos

Esclarece o inciso II do referido artigo que a redução pode se dar mediante negociação coletiva ou acordo individual com os empregados:

II - pactuação, conforme o disposto nos arts. 11 e 12 desta Lei, por convenção coletiva de trabalho, acordo coletivo de trabalho ou acordo individual escrito entre empregador e empregado;

Cabe destacar que na negociação individual com os empregados, os percentuais permitidos para redução de salário e jornada são pré-definidos em lei:

III - na hipótese de pactuação por acordo individual escrito, encaminhamento da proposta de acordo ao empregado com antecedência de, no mínimo, 2 (dois) dias corridos, e redução da jornada de trabalho e do salário exclusivamente nos seguintes percentuais:

a) 25% (vinte e cinco por cento);

b) 50% (cinquenta por cento);

c) 70% (setenta por cento).

Quanto à negociação coletiva, por contar com a participação do ente sindical que represente a categoria, podem ser fixados outros percentuais de redução:

Art. 11. As medidas de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho de que trata esta Lei poderão ser celebradas por meio de negociação coletiva, observado o disposto nos arts. 7º e 8º desta Lei e no § 1º deste artigo.

§ 1º A convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho poderão estabelecer redução de jornada de trabalho e de salário em percentuais diversos dos previstos no inciso III do caput do art. 7º desta Lei.

Da mesma forma, a suspensão dos contratos de trabalho pode ser negociada por via individual ou negociação coletiva:

Art. 8º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º desta Lei, o empregador poderá acordar a suspensão temporária do contrato de trabalho de seus empregados, de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho, pelo prazo máximo de 60 (sessenta) dias, fracionável em 2 (dois) períodos de até 30 (trinta) dias, podendo ser prorrogado por prazo determinado em ato do Poder Executivo.     

§ 1º A suspensão temporária do contrato de trabalho será pactuada, conforme o disposto nos arts. 11 e 12 desta Lei, por convenção coletiva de trabalho, acordo coletivo de trabalho ou acordo individual escrito entre empregador e empregado, devendo a proposta de acordo, nesta última hipótese, ser encaminhada ao empregado com antecedência de, no mínimo, 2 (dois) dias corridos.

Verifica-se, ademais, o cuidado do legislador no trato do Direito Coletivo do Trabalho, ao prever as condições de validade do acordo individual e a superveniência de negociação coletiva, como tratado nos parágrafos 4º e 5º, do artigo 12, da lei 14.020/20:

§ 4º Os acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho, pactuados nos termos desta Lei, deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato da categoria profissional, no prazo de até 10 (dez) dias corridos, contado da data de sua celebração.

§ 5º Se, após a pactuação de acordo individual na forma deste artigo, houver a celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho com cláusulas conflitantes com as do acordo individual, deverão ser observadas as seguintes regras:

I - a aplicação das condições estabelecidas no acordo individual em relação ao período anterior ao da negociação coletiva;

II - a partir da entrada em vigor da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a prevalência das condições estipuladas na negociação coletiva, naquilo em que conflitarem com as condições estipuladas no acordo individual.

§ 6º Quando as condições do acordo individual forem mais favoráveis ao trabalhador, prevalecerão sobre a negociação coletiva.

É de se notar que o legislador adota a validade de acordo individual, dada à excepcionalidade da situação que, em muitos casos, tem impedido o regular funcionamento de sindicatos, mas, ainda assim, assegura que as medidas possam ser tratadas por negociação coletiva, devendo, ainda, ser comunicado o ente sindical da negociação feita de forma individual.

Outro ponto a se destacar é a previsão da condição mais benéfica ao empregado (artigo 12, §6º), que vai de encontro aos princípios basilares e norteadores do Direito do Trabalho.

5. Conclusão

Com uma série de medidas adotadas ao longo da calamidade pública, a lei 14.020/20 foi a primeira lei editada para amenizar os efeitos da pandemia da covid-19 nas relações de emprego.

Verifica-se a validade de acordos individuais, em virtude da excepcionalidade da situação, mas dá-se total estímulo à negociação coletiva, em consonância às convenções 98 e 154, da OIT.

Por outro lado, privilegia-se, como visto, o acordo mais benéfico ao empregado, reafirmando a aplicabilidade de princípios norteadores do Direito do Trabalho.

Acrescenta-se também que as medidas adotadas na lei 14.020/20 preveem alterações contratuais em caráter excepcional, fundamentadas no estado de calamidade pública, pelo que se mostram lícitas, em observância à condição mais benéfica ao empregado, dignidade humana e preservação de empregos e todo o ordenamento trabalhista.

Por fim, frisa-se que as medidas previstas na lei 14.020/20 são limitadas e válidas somente na situação atual de calamidade pública, mas a negociação coletiva deve ser estimulada e aproveitada nesses momentos, para outras adequações, com base nas convenções 98 e 154, da OIT e na Consolidação das Leis do Trabalho.

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BRASIL. Constituição (1988). Disponível clicando aqui Acesso em 10/7/20.

BRASIL. Lei 4.923/65. Disponível clicando aqui Acesso em 15/7/20

BRASIL. Lei 14.020/20. Disponível clicando aqui Acesso em 16/7/20

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição - 7ª ed – Portugal: 2003.

DELGADO, Mauricio Godinho Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores —Mauricio Godinho Delgado. — 18. ed.— São Paulo: LTr, 2019.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção 98 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível clicando aqui Acesso em 10/7/20.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção 154 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível clicando aqui Acesso em 10/7/20

RANGEL, Daniel Gonçalves. A negociação coletiva como instrumento para superação de crise econômica: antes e pós-reforma trabalhista. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3. Região. Belo Horizonte, v. 63, n. 96, p. 119-133, jul./dez. 2017. Disponível clicando aqui Acesso em 10/7/20

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t*Daniel Gonçalves Rangel é sócio advogado do escritório Cardoso Amorim e Gonçalves Brant. Membro da Associação Mineira de Advogados Trabalhistas – AMAT. Pós-graduado em Direito do Trabalho. Pós-graduando em Direito Empresarial.

t*Ricardo Souza Calcini é mestre em Direito pela PUC/SP. Professor de pós-graduação em Direito do Trabalho da FMU. Palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company" pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos.