Apesar da passagem do tempo, peça de Sófocles apresenta uma história de desobediência civil e de uma batalha devastadora que, até hoje, continua tocando as pessoas

Antígona não quer deixar Polinice sem um enterro: “Eu vou colocar terra sobre o corpo humilhado do meu pobre irmão” [Ilustração: Rebecca Hendin/BBC Ideas]

Tudo começou há quase 2.500 anos, na Acrópole de Atenas, durante a festa em homenagem a Dionísio, o deus do teatro. Os gregos ali presentes conheciam as primeiras – e já marcantes – palavras com que o poeta Sófocles contava a história de Antígona: “Ismênia, minha querida irmã, companheira de meu destino, de todos os males que Édipo deixou, suspensos, sobre a sua descendência, haverá algum com que Júpiter ainda não tenha afligido nossa vida infeliz?”.

Antígona – o público sabia – era uma das duas filhas de Édipo Rei, protagonista da peça anterior de Sófocles e considerado o mais infeliz dos reis de Tebas. Sem saber, Édipo matou o pai, Laio, e se casou com a própria mãe, Jocasta. Quando o diálogo entre Antígona e Ismênia começa, Jocasta já havia se suicidado, e Édipo tinha furado os olhos, se exilado e morrido. Mas aos infortúnios da família se soma uma guerra em que lutaram os dois filhos de Édipo, Etéocles e Polinice.

Como destaca Ismênia, ela e a irmã perderam, “num só dia, dois irmãos, um derramando o sangue do outro, se dando mutuamente o golpe de extermínio”. O enredo que se desenrola a partir deste ponto é tão emocionante que “a peça de teatro mais representada no mundo não é uma das adaptações de Harry Potter, de Hamlet ou qualquer outra obra de Shakespeare: é Antígona”, diz o escritor irlandês Colm Tóibín.

E por que se trata de uma obra tão popular? “Porque é uma peça fantástica”, responde o diretor teatral Olivier Py. Apesar da passagem do tempo, essa história de desobediência civil e de uma batalha devastadora continua tocando as pessoas até hoje.  Vale a pena lembrar seu enredo, um dos mais influentes na história da cultura ocidental.

Com a morte de Édipo morre, quem herda o reino de Tebas são seus filhos Etéocles e Polinice – com a condição de que governem alternadamente. Mas, quando chega a hora de Etéocles ceder o poder ao irmão, ele se recusa, levando Polinice a formar um exército. Depois que os irmãos se matam, seu tio Creonte assume o poder. Sua primeira decisão é honrar a memória de Etéocles e não sepultar Polinice, para que as aves de rapina e as hienas o devorem.

Antígona não aceita isso. A seu ver, embora a sociedade o julgue negativamente, seu irmão merece descansar com dignidade – e ela fará de tudo para honrá-lo com um simples gesto: jogar terra sobre seu corpo.

Py montou Antígona em 2019 com detentos da prisão de Avignon-Le Pontet, na França. Segundo ele, os atores “entenderam profundamente esta ideia de que um homem ainda é um homem, independentemente do que ele tenha feito”. Eis a mensagem mais forte e mais longeva da peça de Sófocles. “O maravilhoso de Antígona é que ela luta pelo direito de expressão e de contar a história sob seu ponto de vista. Por isso, para mim, seu ato de desafiar o Estado ou o poder é importante”, diz Py. “Normalmente só ouvimos a história sob a perspectiva dos fortes, dos vitoriosos ou das autoridades.”

Enquanto estava preso, Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul conhecido por sua luta contra o apartheid, também atuou em uma versão de Antígona produzida na Ilha Robben, onde ficou encarcerado. Para refugiadas sírias no campo de Shatila, no Líbano, que encenaram uma versão da peça, foi um reflexo de suas lutas diárias. Esta versão da obra, criada pelo dramaturgo Mohammad Al Attar, mesclou as experiências das refugiadas.

Sem querer, Al Attar descobriu que várias compartilhavam a mesma angústia de Antígona por não poder enterrar seus entes queridos. “A ideia de honrar nossos mortos é tão fundamental”, diz Tóibín, “que nenhum decreto, nenhuma lei, pode mudá-la”. Ainda assim, suscita dilemas difíceis.

A partir do primeiro diálogo entre as irmãs, Sófocles apresenta o dilema – ou melhor, um dos complicados dilemas com que a peça nos confronta. Antígona leva Ismênia para fora do palácio e conta a ela o que Creonte decidiu fazer com o corpo de Polinice – e sobre o decreto proibindo todos os cidadãos de sepultá-lo ou sequer chorar por ele.

“Sua decisão é fria e ameaça quem a desrespeitar com a lapidação, morte a pedradas”, informa Antígona à irmã, enquanto a confronta com a realidade, sob seu ponto de vista. “Agora sabes tudo. Logo poderás demonstrar se tu mesma és nobre ou se és apenas filha degenerada de uma raça nobre.”

Ismênia, consternada, responde: “Minha pobre irmã, se o caso é esse, que importa o que eu faça ou o que eu não faça?” Para Antígona, a única opção é enterrá-lo: “Enterro meu irmão, que é também o teu. Farei a minha e a tua parte se tu te recusares. Poderão me matar, mas não dizer que eu o traí”.

Ismênia, porém, é mais racional e pede a ela que reflita: “Temos de lembrar, primeiro, que nascemos mulheres, não podemos competir com os homens; segundo, que somos todos dominados pelos que detêm a força e temos de obedecer a eles, não apenas nisso, mas em coisas bem mais humilhantes.” A ideia de “desafiar” é para ela um gesto excessivo e sem sentido: “Peço perdão aos mortos que só a terra oprime: não tenho como resistir aos poderosos. Constrangida a obedecer, obedeço”.

“Sófocles sempre usa esse tipo de dualidade: dois personagens expondo o dilema”, destaca Lydia Koniordou, atriz, diretora e ex-ministra da Cultura da Grécia. Em Antígona, cada irmã assume uma posição: Ismênia defende a sobrevivência; Antígona, a morte honrosa. Nenhuma delas é necessariamente boa ou má. Tudo depende do ponto de vista do público – e esta é uma das razões pelas quais a obra de Sófocles pôde ser apresentada a qualquer momento, em qualquer lugar.

A peça foi encenada até mesmo na França de 1944. Com uso inteligente da linguagem, o dramaturgo Jean Anouilh conseguiu fazer com que sua versão da obra fosse aceita pelos censores nazistas durante a ocupação alemã no país, embora permanecesse claramente uma reflexão sobre a submissão e resistência ao poder e ao controle.

E tem sido assim ao longo dos anos com esta peça, criada numa época em que o teatro tinha um papel muito especial. Atenas, a cidade-estado, foi uma das primeiras democracias do mundo – e, em sua Acrópole, estava um dos primeiros teatros da história… Nada foi por acaso. “O teatro era parte integrante da democracia”, explica Koniordou. “Era uma das instituições da democracia: o Parlamento era uma, o Judiciário era a segunda, e a terceira era o Teatro.”

Segundo a ex-ministra grega, “todos os cidadãos iam a Atenas para participar do diálogo e da discussão sobre assuntos públicos e privados da cidade. Para aqueles que não tinham dinheiro suficiente, a cidade dava ingressos grátis”. E Sófocles era um gênio fomentando essas discussões, não apenas convidando à reflexão ao criar situações complexas, mas também personagens multifacetados.

Creonte, o rei, tio de Antígona e pai de seu noivo, poderia facilmente ser classificado como “o vilão”. Mas ele é o homem responsável por unir a sociedade após uma guerra civil. “Ismênia é uma personagem poderosa e interessante, e não fraca como às vezes é retratada”, diz Koniordou.

Já Antígona é uma heroína nem sempre simpática. Ela manipula e despreza a irmã, não é totalmente correta e se aproveita ao máximo da sua situação de vítima. “Antígona é tão exagerada quanto Creonte e igualmente rígida em suas decisões”, afirma a Koniordou. Mas ela questiona o poder em um aspecto fundamental: seus limites. Creonte “não tem nenhum direito de me privar dos meus”, declara a personagem.

Tóibín nos convida a lembrar “de qualquer momento em que as mulheres tenham enfrentado governos e o poder”. Cita o caso do movimento #MeToo, que denunciou, sobretudo em Hollywood, casos de assédio e abuso sexual. Ou das Mães da Praça de Maio, que tiveram filhos mortos ou desaparecidos durante a ditadura na Argentina e ocuparam por décadas uma praça icônica de Buenos Aires.

“Elas disseram: ‘Representamos algo mais antigo e verdadeiro que um decreto ou uma legislação, ou o poder do Parlamento ou a ditadura’”, opina Tóibín. “Esta obra permite que a mulher fale e acuse, e permite que ela diga: ‘Eu sei algo que você não sabe sobre o poder e vou desafiá-lo, porque a forma como você o está usando é uma forma de abuso. Você pode ser o rei, mas está errado”, acrescenta o escritor irlandês.

Creonte se dá conta disso. Diferentemente dos políticos modernos “que nunca admitem que cometeram um erro”, diz Koniordou, Creonte tenta reparar os danos. Mas chega dolorosamente tarde demais. Tanto ele quanto Antígona pagam o preço mais alto pelas decisões que tomaram e arrastam seus entes queridos para as profundezas do luto, não sem antes de nos levar a questionar tudo – seja no século 5 a.C., neste século ou, provavelmente, nos que virão. Como diz Tóibín: “Esse mundo de 2.500 anos atrás ainda é, em certa medida, o nosso”.

Com informações da BBC Brasil

Disponível em: https://vermelho.org.br/2020/12/28/2-500-anos-depois-antigona-continua-a-desafiar-o-poder/