OPINIÃO

Por 

Em tempos de pós-verdade e polarização político-ideológica, torna-se usual que o debate público deixe de lado a objetividade e a racionalidade para dar lugar a um embate de narrativas emocionado e apocalíptico. O absolutismo político e a dissonância xiita no campo ideológico impedem a análise objetiva e percuciente dos fatos, dando vazão a uma retórica sofista e falaciosa. Dos muitos exemplos de tal realidade, o mais recente é o caso do Projeto de Lei nº 4.188/2021, aprovado pela Câmara dos Deputados em 1/6. Tão logo aprovado, ainda que de forma parcial, em razão da devida passagem pelo Senado, em atenção ao processo legislativo previsto na Constituição, ouviu-se um tropel de vozeria a ecoar indignação com o teor do projeto. Deste ronronar, pode-se identificar uma constante: a aprovação do projeto seria o fim da impenhorabilidade do bem de família.

Já dizia a sabedoria popular: prudência não faz mal a ninguém. Teria mesmo o legislador extirpado do ordenamento jurídico a impenhorabilidade do único imóvel, da única residência, da entidade familiar? Aparte dos arroubos de retórica e do afã fatalista, com fulcro na letra objetiva do projeto legislativo, estes comentários sumários buscam responder a essa questão.

De acordo com sua ementa, o Projeto de Lei nº 4.188/2021, de autoria do Poder Executivo, tem por objeto "o serviço de gestão especializada de garantias, o aprimoramento das regras de garantias". Neste escopo, empreendeu alterações em diversos diplomas legais, dentre os quais a Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, reguladora da impenhorabilidade do bem de família.

Segundo a redação proposta, o artigo 3º, inciso V da Lei nº 8.009/1990 passaria a vigorar dispondo ser inoponível a impenhorabilidade "para excussão de imóvel oferecido como garantia real, independentemente da obrigação garantida ou da destinação dos recursos obtidos, mesmo quando a dívida for de terceiro". Atualmente, no texto em vigor da Lei 8.009/1990, já há a previsão de que não cabe arguir impenhorabilidade por bem de família quando se tratar de "execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar". Vê-se, deste cotejo redacional, que a proposta visa tornar ampla, geral e irrestrita o descabimento de invocação da impenhorabilidade do bem de família. No entanto, tal amplitude pretendida limita-se aos casos em que o bem fora dado em garantia, não estendendo-se a toda e qualquer dívida contraída.

Consoante a justificativa do projeto de lei, tal alteração busca "restringir as possibilidades de um imóvel ser alegado como bem de família, com o fundamento abstrato que não foi oferecido pela 'entidade familiar' e não foi utilizada hipoteca", entendendo que "a previsão atualmente contida no inciso V do artigo 3º da Lei nº 8.009, de 1990, tem causado insegurança jurídica, com consequente aumento dos riscos e dos custos das operações de crédito".

A ideologia subjacente a esse novo empreendimento legislativo não é nova. Em verdade, repousa sobre uma linha de pensamento inaugurada em 2016, no contexto do impeachment de Dilma Rousseff, e matizada em textos legais como a reforma trabalhista (2017) e a Lei de Liberdade Econômica (2019): opor-se ao Estado intervencionista e dirigista, para dar vazão ao protagonismo da iniciativa privada, atribuindo a esta um âmbito de gestão autônoma dos próprios interesses e condutas, em um prestígio à independência e ao senso de responsabilidade dos indivíduos.

De toda forma, em que pese tal diretriz, e uma perspectiva enviesa favorável ao sistema financeiro, em desprestígio aos ditames basilares da dignidade humana e da sobrevivência condigna do indivíduo, ao contrário dos ruídos discursivos em polvorosa que proclamam a extinção do bem de família, tal instituto jurídico não foi vergastado pelo projeto legislativo em comento. Inobstante a confessa recalcitrância do legislador em relação à impenhorabilidade fundada no bem de família, a normativa em discussão limitou-se a alterar a admissibilidade de excussão do bem de família dado em garantia.

Neste passo, cumpre suscitar novo questionamento: trata-se mesmo de real inovação? Pilar do sistema democrático, o exercício do poder estatal se divide entre Executivo, Legislativo e Judiciário, relacionados entre si por uma dinâmica de divisão de competências permeada por freios e contrapesos. Assim, não basta analisar unicamente o feitio legislativo, mas impende estudar também o entendimento jurisprudencial a respeito do tema.

Com efeito, a dação de bens de família em garantia não é uma prática nova, inaugurada com o PL n. 4188/2021, mas, antes, tal projeto vem conformar uma realidade já existente. Da mesma forma, a inoponibilidade da impenhorabilidade também não é fruto do novel diploma em ferenda, mas já encontrava recepção na Lei nº 8009/1990. Porquanto desta constatação, o tema já era analisado pelos tribunais, de modo que resta a indagação: a inovação legal mudará a práxis jurídica? Vejamos.

Como visto, a Lei nº 8.009/1990, que regula a impenhorabilidade do bem de família, já previa exceções, hipóteses em que mesmo sendo a única residência da entidade familiar, a impenhorabilidade não poderia ser alegada. Dentre essas hipóteses, estava a possibilidade de excussão do bem de família quando se tratasse da "execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar". Ou seja, não se tratava da penhorabilidade do bem de família pura e simples, mas, sim, da expropriação do bem de família que havia sido dado em garantia real para a dívida inadimplida e executada.

Neste sentido, os tribunais sempre acolheram a penhorabilidade do bem de família dado em garantia, sob fundamento de que a dação em garantia implicaria renúncia ao benefício legal (dentre as múltiplas decisões, cf., a título de exemplo, TJ-SP; Apelação Cível nº 1000768-53.2020.8.26.0083; rel. des. Hugo Crepaldi; 25ª Câmara de Direito Privado; data do Julgamento: 31/5/2022; STJ; Recurso Especial nº 1.782.227; rel. min. Nancy Andrighi; data do julgamento: 27/8/2019). Desta forma, a alteração legislativa proposta pelo PL 4.188 não destoa do que já ocorre na prática. Sua inovação, no entanto, vem na extensão indiscriminada da hipótese em questão: uma vez dado em garantia, o bem de família torna-se passível de constrição "independentemente da obrigação garantida ou da destinação dos recursos obtidos, mesmo quando a dívida for de terceiro".

A discussão no atual sistema legislativo concerne à amplitude da exceção: qualquer dívida garantida por bem de família afastaria a impenhorabilidade ou tão somente quando a dívida havia sido revertida em benefício da entidade familiar? Neste ponto, verifica-se que o reconhecimento da penhorabilidade só é viável quando a dívida exequenda tiver revertido em favor da entidade familiar (v.g., TJ-SP; Apelação Cível nº 1004115-66.2014.8.26.0322; rel. des. Sebastião Flávio; 23ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 26/10/2016; STJ, (Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.806.412/PR, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, data do julgamento: 14/2/2022).

Doutro giro, o PL em comento vem lançar pá de cal, inovando a sistema para afastar tal entendimento: a partir de sua sanção, toda e qualquer dívida, garantida por imóvel com natureza de bem de família enseja a expropriação do bem garantidor, tenha ou não revertido em favor da entidade familiar. Certamente a matéria será justicializada, inclusive em sede de jurisdição constitucional, a demandar do aplicador a opção entre o sistema constitucional/convencional que reconhece a dignidade humana do devedor e o direito à moradia ou o pragmatismo economicista deferente ao capital financeiro.

Conclui-se, pois, tal qual a peça de Shakespeare, que a repercussão ao projeto é muito barulho por (quase) nada. Ainda que o projeto seja passível de justificadas e necessárias críticas, e represente uma visão de mundo que ofende aos princípios basilares do sistema democrático e da dignidade humana, é preciso haver honestidade intelectual. O bem de família subsiste ainda no ordenamento brasileiro. O Projeto de Lei nº 4188/2021 sinaliza uma visão de mundo contrária a impenhorabilidade lastreada na natureza de bem de família. Porém não lhe desferiu um golpe de misericórdia.

Uma vez aprovado e sancionado, cumprirá ao intérprete encontrar caminhos para a aplicação constitucional e convencional do regime jurídico disciplinador do direito à moradia e da impenhorabilidade do bem de família, interpretando as exceções à impenhorabilidade, inclusive a ampliação feita pelo PL nº 4188/2021, não segundo um pragmatismo economicista, mas, antes, de acordo com a axiologia pro homine, que reconhece o ser humano como o valor superior de todo o ordenamento jurídico e conduz à maximização dos direitos do indivíduo.

 é advogado, professor na Faculdade Fleming de Cerquilho (FAC), doutorando em proteção dos direitos fundamentais na Universidade de Itaúna (MG), mestre em direitos difusos e coletivos pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e bacharel em ciências jurídicas pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-jun-12/daniel-eisaqui-fim-bem-familia