LIBERDADE AMEAÇADA

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No dia 23 de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o o Projeto de Lei 4606/19, de autoria do deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA). A proposta do parlamentar veda qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento, com seus capítulos — ou versículos —, garantindo a pregação do conteúdo "na íntegra" em todo o território nacional.

O PL, contudo, não estabelece qualquer tipo de punição em caso de eventual descumprimento do texto. Com a aprovação pela Câmara, a iniciativa segue agora para apreciação do Senado. 

Advogados constitucionalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontaram vícios no texto aprovado e analisam que o projeto de lei é inconstitucional. 

João Paulo Pessôa Pereira Lustosa, sócio do Martorelli Advogados, acredita de antemão que, se o PL for aprovado no Senado como está redigido, vai se refletir em uma série de entraves jurídicos. "Inicialmente qual seria a versão 'oficial' que adotaríamos? Quem definirá essa versão? O Estado passará a proibir as demais versões? Temos diversas traduções e versões do texto bíblico, de modo que não vejo como unificar em uma única 'versão oficial', sobretudo porque a própria Bíblia possui diversos autores, de países e épocas diferentes, o que interfere na linguagem adotada, e consequentemente, na tradução", questiona. O advogado acrescenta que, pelo projeto, até as versões destinadas ao público infantil estariam proibidas.

Rafael Paiva, advogado e professor de Direito Constitucional, sustenta que a iniciativa viola um dos mais importantes princípios da Constituição Federal de 1988, que estabelece a clara separação entre Estado e a religião, por meio da instituição de um Estado Laico. Desta forma, temos de forma bastante cristalina que não cabe ao Estado, através do seu Parlamento, impor uma ou outra versão do texto da Bíblia.

"Esta medida configura um ataque ao próprio direito individual de liberdade religiosa, estabelecido no Artigo 5º, da Constituição Federal. Eis que é fato notório que o texto da Bíblia possui diversas versões, e sofreu constantes alterações históricas, sendo considerado livro sagrado para várias denominações religiosas", afirma.

Outra inconstitucionalidade é apontada pelo advogado Henderson Fürst. Ele lembra que a Bíblia possui diversas versões, conteúdos e traduções aceitas por grupos religiosos diferentes, e impedir que tais grupos possam alterar livremente sua versão do livro é ferir a liberdade religiosa do grupo. 

"Além disso, autores também possuem a liberdade de expressão para criar adaptações sobre outros textos — é o caso, por exemplo, de versões ilustradas da Bíblia ou adaptadas para leitores diversos. O projeto de lei também irá violar essa liberdade", lembra.

Antirreligioso e anticientífico


A ofensa à liberdade de expressão também é apontada como um dos principais vícios do PL por Georges Abboud, sócio do Warde Advogados, livre-docente pela PUC-SP, professor de Direito Constitucional na PUC-SP e no IDP. 

Ele explica que o texto atual viola viola frontalmente a livre-inciativa (Constituição Federal, art. 1º, IV e art. 170), a liberdade de expressão (Constituição Federal, art. 5º, IV), o desenvolvimento científico do Estado (Constituição Federal, art. 218) e até mesmo a liberdade religiosa (Constituição Federal, art. 5º, VI). 

"A Bíblia é o conjunto de livros mais traduzido da face da Terra, com milhares de versões, antigas e contemporâneas, elaboradas por diversos grupos de pessoas, com diferentes propósitos e metodologias. Assim, o PL em questão é não só antirreligioso como, também, anticientífico", diz.

O especialista defende que não faz qualquer sentido bloquear, de antemão, edições, alterações e acréscimos que se queiram fazer ao texto bíblico. Afinal, o livro, num mundo secularizado, pertence a uma realidade viva, alvo de reinterpretações e ressignificações mais do que inevitáveis. "O próprio projeto incorre nesse erro crasso, ao definir tudo isso como ato de intolerância religiosa. Viola, assim, a Constituição, ao impor uma restrição completamente desproporcional. Nessa perspectiva, o projeto de lei é inconstitucional por agredir o direito fundamental à liberdade", analisa.

A advogada e especialista em Direito Constitucional Vera Chemin, por sua vez, recorda que a liberdade de consciência e de crença, tal como a liberdade religiosa, constitui mais uma forma de liberdade de expressão e/ou de comunicação que limita a intervenção do Estado. "O Inciso VI assegura a liberdade de exercício dos cultos religiosos sem qualquer tipo de restrição, além de proteger os seus locais e suas liturgias. Portanto, o projeto de lei que proíbe alteração na Bíblia é inócuo, uma vez que o Estado não tem por que criar uma legislação nesse sentido, decidindo ou não se o texto bíblico deve ou não ser alterado", diz.

A advogada também sustenta que  todas as religiões podem dispor da Bíblia, interpretando-a conforme as suas respectivas crenças, sem necessidade de intervenção estatal. "A única hipótese de limitar o seu exercício remete à necessidade de se manter a ordem pública, como ocorreu durante a pandemia, em que as liturgias (não a liberdade religiosa propriamente dita) correspondentes às religiões foram proibidas por motivo de saúde pública", recorda.

 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-nov-29/especialistas-pl-veta-versoes-biblia-inconstitucional