Insatisfeito e irritado com investimentos sociais, o mercado financeiro não parece enxergar problema em ações por trabalho escravo, crimes ambientais e desrespeito a contratos de concessão de serviços públicos. Premiações e reconhecimentos são uma constante para a Rumo, maior operadora logística do Brasil, que faz dos ouvidos seletivos dos investidores uma fonte de dinheiro para o caixa. 

A corporação do empresário bolsonarista Rubens Ometto encontrou portas abertas no Planalto para ampliar os lucros em meio a renovações de contrato a toque de caixa e antes do prazo, construções de ferrovias que ameaçam terras indígenas e processos por crimes trabalhistas graves. Nada disso abalou a fé do mercado na antiga América Latina Logística (ALL), empresa surgida das privatizações dos anos 90 e que avançou na esteira da transformação do Brasil em meca do agronegócio. 

Uma das conquistas mais emblemáticas é o pertencimento ao Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3, a bolsa de valores do Brasil. “Como reconhecimento por nossas ações em sustentabilidade, fomos a única Companhia do setor logístico selecionada para compor a carteira 2022 do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE)”, comemora o diretor presidente da Rumo, João Alberto Abreu, no relatório de sustentabilidade da empresa referente a 2021. 

Um reconhecimento que diz muito sobre as promessas do mercado de que será possível conciliar lucro e sustentabilidade. Em meio às flutuações do mercado financeiro global, uma sigla tem apresentado crescimento constante nos últimos anos entre investidores e empresários: ESG.

A sigla teve origem em 2004, no documento Who Cares Wins, publicação do Pacto Global da ONU em parceria com o Banco Mundial, elaborado a partir de uma provocação do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, a 50 CEOs de grandes instituições financeiras para integrarem no mercado de capitais questões referentes aos termos que compõem a sigla – E, de enviromental (ambiental), S, de social, e G, de governance.

Seu uso teve um aumento acentuado a partir de 2020, quando passou a se falar em um “tsunami ESG”. A pandemia de Covid-19 teria garantido um surto de boas práticas às corporações que até então figuravam no centro dos problemas do mundo? Não. Não mesmo. 

No começo daquele ano, as três letras foram mencionadas na carta ao mercado de Larry Fink, CEO da maior gestora mundial de ativos, a BlackRock, uma das acionistas da Rumo. De crescimento vertiginoso, a BlackRock foi a primeira corporação do mundo a controlar mais de US$ 10 trilhões em ativos – equivalente a seis PIBs do Brasil. Na visão de Fink, o ESG trata de uma “reformulação fundamental das finanças”. 

Ele falou sobre uma “realocação significativa de capital” em um futuro próximo e anunciou que a sustentabilidade passaria a ser o novo padrão de investimento da BlackRock. Mais uma boa notícia, considerando a capacidade da BlackRock de causar mudanças nas empresas nas quais investe e de influenciar todo o restante do mercado financeiro? Mais uma vez, não.

No ano seguinte, Fink comemorou o saldo daqueles investimentos: de janeiro a novembro de 2020, segundo a BlackRock, foram investidos globalmente US$ 288 bilhões em ativos sustentáveis, um aumento de 96% em relação a 2019.

ESG no Brasil

Em setembro deste ano foi publicada a terceira edição do Guia B3 Sustentabilidade e Gestão ASG nas Empresas – ASG é a tradução para o português da sigla ESG. O olhar da B3 sobre o tema diz bastante sobre o que significa a sigla para o mercado financeiro. O guia traça uma linha divisória entre o conceito de sustentabilidade e a agenda ASG. 

Para a B3, ASG é “uma abordagem especificamente voltada para a integração de certos aspectos não financeiros aos negócios”, enquanto a sustentabilidade “considera os impactos dos negócios em uma agenda abrangente de expectativas da sociedade em relação às empresas e todos os demais fatores envolvidos no sistema de produção e consumo”.

Em seu guia atualizado, a B3 apresenta um quadro para explicitar a forma como diferencia a sigla ASG do conceito de sustentabilidade. Na coluna de ASG não encontramos as palavras sociedade, meio ambiente ou impactos sociais. Segundo a B3, o público do ASG é principalmente o mercado financeiro, e sua motivação é “cuidar da longevidade do negócio, à medida que responde às demandas do mercado financeiro”.

Em seu guia atualizado, a B3 apresenta um quadro para explicitar a forma como diferencia a sigla ASG do conceito de sustentabilidade

Em 2022, em sua carta anual aos empresários, Larry Fink expressou um posicionamento que apresenta convergências com a forma como a B3 encara o assunto. “Não se trata de política. Não é uma agenda social ou ideológica. Não é justiça social. É o capitalismo, conduzido por relacionamentos mutuamente benéficos entre você e os funcionários, clientes, fornecedores e comunidades nos quais sua empresa depende para prosperar. Esse é o poder do capitalismo”, escreveu.

No Brasil, fundos ESG captaram R$ 2,5 bilhões em 2020, sendo que mais da metade da captação veio de fundos criados naquele ano, segundo estudo feito pela Morningstar a pedido da Capital Reset.

No mesmo ano, a Rumo fez uma captação de R$ 500 milhões e emitiu o primeiro título verde da história das ferrovias de cargas da América Latina, com certificação da Climate Bonds Initiative, “que devem ser investidos em projetos para maior eficiência e, consequentemente, redução de emissões de gases de efeito estufa, contribuindo para a transição de uma economia de baixo carbono”, aponta o relatório de sustentabilidade da empresa.

Os títulos verdes (green bonds) são títulos de dívida, que pagam juros e são vendidos a investidores. Esses títulos são emitidos unicamente para financiar projetos com compromissos ambientais – como a redução de emissão de gases do efeito estufa.

Segundo um estudo publicado no ano passado pela organização Finanças Brasileiras Sustentáveis (FiBraS), o mercado de finanças sustentáveis começou a esquentar em 2020 –  junto com a popularização da sigla ESG –  e alcançou, naquele ano, um recorde com o valor total US$ 732,1 bilhões em títulos e empréstimos ambientais. 

Em 2021, o aumento foi ainda maior e o valor total acumulado chegou a bater a marca dos US$ 4 trilhões. Na América Latina, o Brasil é líder em quantidade e volume de emissões, com recorde de US$ 15,8 bilhões apenas em 2021, uma alta de 531% em comparação a 2019.

Sem rumo

A Rumo opera 14 mil quilômetros de trilhos em nove estados, 12 terminais de transbordo e seis terminais portuários. Tem 1.400 locomotivas e 35 mil vagões. Os principais clientes são empresas de exportação que participam do mercado de commodities agrícolas, como Bunge, Cargill e Amaggi.

Com o crescimento do fluxo de capitais atrelados à sigla ESG, a B3 iniciou uma reformulação do seu Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), criado em 2005. A nova metodologia foi anunciada em julho de 2021 e passou a ser empregada na 17ª carteira de ISE, com vigência de 3 de janeiro a 30 de dezembro de 2022. Foi nessa carteira que a Rumo passou a incorporar a carteira ISE da B3, título mantido na edição recém-atualizada, com vigência até o fim de 2023. 

O diretor-presidente da Rumo também destaca que, de modo a alinhar seu desempenho operacional e financeiro às práticas ESG, a concessionária se tornou a primeira empresa brasileira a emitir uma Sustainability Linked Debenture (SLD), debênture atrelada a compromissos ambientais, sociais e de governança, com a qual captou R$ 1,5 bilhão condicionados à meta de reduzir 15% as emissões de gases de efeito estufa (GEE), por tonelada de quilômetro útil (TKU), até 2023.

No relatório, a empresa também lista algumas premiações recebidas no período: 

  • 1º lugar na categoria Logística no prêmio As Melhores da IstoÉ Dinheiro 2021 e 2022 
  • 1º lugar na categoria Infraestrutura na Época 360º 
  • Prêmio Project & Infraestructure Finance da Revista Latin Finance, pelo Green Bond
  • Prêmio Líderes do Brasil 2021, promovido pela Lide na categoria Infraestrutura. 
  • elo Empresa Amiga da Justiça, do Tribunal de Justiça de São Paulo. 

Fonte: Relatório de sustentabilidade da Rumo referente a 2021

A Rumo aderiu em dezembro de 2020 ao Pacto Global, iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) que estimula as empresas a adotar políticas e práticas relacionadas a 10 princípios nas áreas de direitos humanos, trabalho, meio ambiente e anticorrupção. Em janeiro de 2021 ela se somou ao Conselho Empresarial Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), associação que diz promover o desenvolvimento sustentável das empresas que atuam no Brasil. 

Para entender o que significa na prática a aplicação do termo ESG entre as empresas no Brasil, o Joio escolheu a Rumo como uma representante dessa agenda. 

Por operar com ferrovias, o principal argumento da Rumo em relação à sustentabilidade é a redução de gases do efeito estufa, já que a operação com trens, de forma geral, seria menos poluidora em relação ao uso de caminhões nas rodovias. Mas isso é suficiente para que uma empresa seja considerada sustentável?

Para o engenheiro José Manoel Ferreira Gonçalves, que tem pós-doutorado em sustentabilidade e transportes pela Universidade de Lisboa e preside a Frente Nacional Pela Volta das Ferrovias (Ferrofrente), dizer que a Rumo é uma empresa sustentável é “uma piada, uma mentira”.

“Isso é um engodo. A Rumo é uma empresa poluidora, nunca respeitou as questões ambientais. A ALL já tinha um passivo ambiental grande, a Rumo só fez aumentar isso. Você tem as ferrovias que foram abandonadas, os passivos ambientais são inúmeros. É preciso que a gente realmente desmistifique isso”, afirma em entrevista ao Joio.

Processos judiciais

A Rumo foi criada pela Cosan em 2015 por meio de uma fusão com a antiga América Latina Logística (ALL). Além das concessões de ferrovias da ALL, a nova empresa herdou processos que permanecem em tramitação na Justiça, dois deles referentes a emprego de trabalho na condição análoga à escravidão.

Ao longo dos anos, a Rumo adicionou novos crimes à ficha: a empresa é alvo de ações cíveis, indenizatórias, trabalhistas, fiscais, ambientais e regulatórias.

“Não foi registrada qualquer provisão nas informações trimestrais da Companhia com relação a processos nos quais a chance de perda é considerada possível. Em 31 de dezembro de 2021, os valores envolvidos nos processos com risco de perda possível totalizavam R$ 9,1 bilhões”, aponta o formulário de referência da empresa, disponível no site da Comissão de Valores Mobiliários. 

Segundo esse documento, a Rumo e suas controladas são parte em oito ações penais, que “apuram a ocorrência de supostos crimes ambientais por alegada poluição sonora, dano ao patrimônio histórico, transporte de produtos perigosos, contaminação de solo e supressão da vegetação”.

Uma dessas ações tem como base processo instaurado pelo Ministério Público de São Paulo em outubro de 2016, devido ao abandono de 13 vagões em área de proteção permanente (APP) no município de Catiguá (SP). Parte desse material permanece no local ainda hoje em propriedade de terceiros.

Material abandonado pela Rumo em área de proteção permanente (APP) no município de Catiguá (SP)

Em outra ação penal, que tramita na Vara Criminal de Morretes (PR), a denúncia apresentada pelo Ministério Público aponta crimes ambientais ocorridos em janeiro de 2018, relativos à “danificação de vegetação nativa em estágio avançado de regeneração, contaminação de solo em área de preservação permanente, disposição inadequada de resíduos sólidos e descaracterização de paisagem natural em área adscrita à Unidade de Conservação e Proteção Integral”.

Na 10ª Vara Criminal da Capital (SP), em ação penal instaurada em janeiro de 2020, o Ministério Público Estadual acusa a Rumo de “causar danos de maneira continuada à Unidade de Conservação Área de Proteção Ambiental Capivari – Monos nos km 63 e 69 da linha férrea São Paulo – Santos”.

Um acionista que tampouco comove o mercado

O formulário de referência da CVM aponta que Rubens Ometto Silveira Mello, presidente do Conselho de Administração da Rumo, é réu em processos criminais, na qualidade de diretor executivo de outras empresas. Na ficha dele constam casos referentes a poluição, “em decorrência da suposta queima de cana”, e “sonegação fiscal em decorrência do suposto recolhimento irregular de ICMS”.

O documento também aponta como fator de risco para a empresa o fato de que os interesses dos acionistas controladores da Companhia podem ser conflitantes com os interesses dos demais acionistas. 

Além da Rumo, Ometto é presidente do Conselho de Administração das empresas Cosan, Raízen e Comgás. A Cosan, por sua vez, detém 30,3% do capital social da Rumo. E já chegou a figurar, em 2009, na Lista Suja do Trabalho Escravo, relação do antigo Ministério do Trabalho sobre empregadores flagrados em ações de fiscalização. 

A Cosan entrou no ISE da B3 em 2020, um ano antes da Rumo, e acaba de ser eleita Empresa do Ano 2022 pela Revista Exame por “ser referência em inovação e comprometimento com o desenvolvimento sustentável do Brasil”.

Já o empresário ganhou destaque na imprensa este ano como um dos principais doadores da campanha eleitoral: destinou R$ 7,4 milhões a candidatos – parte desse montante foi endereçado a ex-ministros bolsonaristas. 

Empresário Rubens Ometto (direita), financiou campanhas bolsonaristas em 2022; maior volume foi destinado ao ex-ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, na campanha ao governo de São Paulo. Fotografia: Isac Nobrega PR

Em sua campanha ao Senado,Tereza Cristina (Agricultura) recebeu R$ 100 mil do empresário. A mesma quantia foi destinada para a campanha ao governo do Rio Grande do Sul de Onyx Lorenzoni (Trabalho e Previdência Social). Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente que entrou para a história como ruralista disposto a “passar a boiada”, também obteve ajuda de R$ 50 mil de Ometto para a campanha a deputado federal.

O aporte mais volumoso foi destinado à campanha de Tarcísio de Freitas. Foram R$ 200 mil doados à campanha do ex-ministro de Infraestrutura do governo Bolsonaro, eleito governador de São Paulo.

O crescimento da Rumo durante o governo Bolsonaro é notável e a participação de Freitas foi fundamental nesse processo. Em maio de 2020, a empresa conseguiu aprovar a renovação antecipada de seu contrato de concessão da Malha Paulista por um período de 30 anos. 

O contrato original tinha vigência até 2028, mas a Rumo conseguiu antecipar em seis anos a assinatura de um aditivo pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), com autorização do Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Augusto Nardes, relator do processo no TCU, aceitou o plano apresentado pela Infraestrutura após uma reunião com o titular da pasta e o presidente Bolsonaro no dia anterior. 

Em tempo: Nardes foi pivô do impeachment de Dilma Rousseff e recentemente voltou às manchetes por um áudio de whatsapp no qual se posicionava sobre os atos golpistas contra a vitória de Lula. 

“Em diversas reuniões de diretoria e até mesmo discussões técnicas, nós chegamos a um posicionamento que não era razoável fazer antecipação da Malha Paulista sem primeiro definir com clareza quais eram os passivos ambientais e operacionais de todos os trechos envolvidos na ferrovia”, aponta o engenheiro José Gonçalves, presidente da Ferrofrente. 

A Rumo conseguiu a renovação da Malha Paulista, mesmo diante de trechos importantes de ferrovia abandonados, a exemplo do ramal Cajati-Samaritá, que liga o Vale do Ribeira ao Porto de Santos. 

O abandono completo da via férrea foi alvo de uma ação apresentada em 2014 na Vara Federal de Santos, apontando o descumprimento de obrigações previstas no contrato de concessão do trecho – e que pede sua reativação. Em caso de derrota na Justiça, a Rumo será condenada a pagar 1% da receita aproximada nos últimos 4 anos, valor estimado em mais de R$ 170 milhões. 

“Há também pedido de imposição de obrigações de difícil estimativa quanto ao valor, pois eventual desfecho desfavorável terá por consequência obrigações para recuperar e manter em atividade trecho Cajati – Samaritá, retirando todos ocupantes irregulares e passagens de nível clandestinas”, aponta o formulário de referência.

Em maio de 2020, o Ministério Público Federal apresentou petição informando o descumprimento da liminar. O documento também destaca que, com a renovação antecipada do contrato de concessão, “houve a previsão de devolução deste trecho ferroviário, com a alegação de perda superveniente de objeto da demanda”. Ou seja, após renovar a concessão, a Rumo quer devolver o trecho para a União, sem realizar o processo de reativação.

A empresa também tenta se desvencilhar dos trechos Nova Odessa-Piracicaba (45,5 km) e Varginha-Evangelista de Souza (25,4 km) – ao todo, 285,5 km de linhas férreas abandonadas, por serem considerados ramais antieconômicos.

“Depois que ela pegou o filé mignon, quer devolver o osso”, resume o presidente da Ferrofrente. “Foi uma ferrovia importante no passado, é o acesso do litoral sul de São Paulo. Você pode ter de novo nessa ferrovia o transporte de passageiros, você pode ter um trem turístico, você pode ter também o transporte de materiais produzidos nessas regiões.”

A retomada do ramal Cajati-Samaritá para uso misto foi considerada viável pela Associação de Engenheiros e Arquitetos de Metrô. Os técnicos da associação defendem a concessão do ramal, ou de trechos, por meio de parceria público-privada que envolveria a concessionária Rumo, governo federal, prefeituras, iniciativa privada e empresas que operam o transporte público intermunicipal e municipal nas cidades.

Uma demanda a ser escoada por meio dessa ferrovia é a produção de banana. A Associação de Bananicultores do Vale do Ribeira (Abavar) transporta hoje uma média de 150 carretas de banana diariamente pelas estradas que ligam o Vale à capital paulista, o interior do estado e o Porto de Santos. Cerca de 10% dessa produção é exportada para os países do Mercosul, como Argentina e Uruguai. O transporte hoje é feito pelas rodovias BR-116 e Padre Manoel da Nóbrega, que estão frequentemente congestionadas pelo fluxo de caminhões e se tornam um obstáculo para o escoamento.

Para Silvio Romão, diretor de Exportações da Abavar, o restabelecimento da ligação ferroviária entre o Vale e o Porto de Santos é fundamental. “É absolutamente importante para você atender um hub como é o Vale do Ribeira. Os caminhões que vão do Sul para Santos podem passar essa carga para frente no Vale, com um trânsito normal e fluido, até Santos. Caminhões que vêm do interior de São Paulo ou de outros estados podem descer até o Vale e passar essa carga para ter acesso ao Porto de Santos por via férrea.”

Romão também destaca as vantagens em relação ao custo operacional e o tempo necessário para a recuperação da ferrovia. “A área de interesse da ferrovia de Cajati até Samaritá já está desapropriada, é a parte mais cara e demorada para o estabelecimento de uma via férrea. É preciso apenas restabelecer o leito e a implantação de trilhos mais modernos. Está absolutamente premente e necessário, vejo como inevitável.”

Além do trecho de ferrovia abandonado, José Gonçalves aponta que a empresa tem deixado de fazer investimentos necessários mesmo em regiões onde continua atuante. Ele cita, como exemplo, o caso da cidade de Cubatão, único município do litoral paulista em que trens de carga operam em área urbana, com 13 bairros residenciais margeados por linhas férreas.

No dia 26 de dezembro de 2021, uma criança de 8 anos foi vítima fatal de atropelamento por um trem da Rumo no bairro Vila Esperança, onde a linha do trem passa próximo a um campo de futebol. Acionado pela Ferrofrente, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) abriu investigação sobre o caso. 

“O assunto Cubatão coloca a nu o problema. A Rumo não investiu praticamente nada em obras que afastem o perigo da presença do trilho praticamente dentro da residência das pessoas. Nós nunca entendemos como razoável você dispensar a licitação e construir cenários suspeitos, que são favoráveis a essas renovações antecipadas.”

Logística para o agronegócio

Em novembro deste ano, a Rumo divulgou um aumento de seis vezes no lucro do terceiro trimestre: foram R$ 309 milhões entre julho e setembro, contra R$ 51 milhões no ano anterior. Os resultados divulgados pela empresa apontam recordes de carga do agronegócio no Centro-Oeste. O aumento de 23,8% no volume de transporte de cargas, o incremento de 23,2% nas tarifas e o menor volume de investimentos são elencados pela empresa como explicação. 

Além da renovação antecipada da Malha Paulista, a Rumo foi beneficiada no governo Bolsonaro com o novo regime regulatório de autorização de ferrovias, instituído por meio da Medida Provisória 1.065. Articulada por Tarcísio de Freitas e aprovada em agosto de 2021, a MP permitiu, no lugar dos leilões, a assinatura de contratos para a concessão de ferrovias por meio da outorga por autorização.

Presidente da República, Jair Bolsonaro posa para foto durante visita à locomotiva. Fotografia: Alan Santos/PR

Embora não tenha se convertido em lei, a MP serviu de base para a Lei nº 14.273, aprovada em 23 de dezembro de 2021 com base no projeto apresentado pelo senador José Serra (PSDB) em 2018.

A Rumo assinou pela modalidade de outorga por autorização três contratos com a ANTT: os trechos de Bom Jesus do Araguaia a Água Boa (MT), dali até Lucas do Rio Verde (MT) e entre as cidades mineiras de Uberlândia e Santa Vitória. Com essas medidas, a empresa passou a consolidar o monopólio no escoamento da produção do agronegócio mato-grossense.

A Ferrofrente defende a suspensão da outorga por autorização e aponta que a medida privilegiou o monopólio do uso de ferrovias para atender a exportação de commodities do agronegócio. Segundo a organização, com essa modalidade, as empresas privadas assumem a operação das ferrovias para atender apenas a seus interesses, sem que o Estado exerça sua prerrogativa de fazer valer os interesses estratégicos do país. Dessa forma, itens como produtos alimentícios e medicamentos para a população brasileira não encontram espaços nas ferrovias.

“O que você tem hoje é o escoamento de minério de ferro, soja, milho e açúcar. Você não tem o escoamento da indústria brasileira nas ferrovias, deixando o Brasil como uma espécie de colônia do século 21”, aponta José Gonçalves.

O monopólio da Rumo começou a se consolidar em 2019, quando a empresa arrematou, por meio de um leilão federal, parte da ferrovia Norte-Sul entre Palmas (TO) e Anápolis (GO). A entrega da ferrovia contou com a presença do então presidente Jair Bolsonaro, que relacionou o sucesso da concessão ao empenho de sua equipe ministerial e citou nominalmente Tarcísio de Freitas, Onyx Lorenzoni e Tereza Cristina – vale lembrar: ministros contemplados com recursos de Rubens Ometto em suas campanhas eleitorais em 2022.

Durante o governo Dilma Rousseff, a Ferrovia Norte-Sul chegou a utilizar a modalidade de concessão horizontal, que permite a atuação de operadores independentes que podem utilizar os trens tanto sobre ferrovias concedidas a particulares quanto em ferrovias públicas. 

O modelo foi abandonado já com a chegada de Michel Temer (MDB) ao poder. 

“O Brasil repetiu a concessão vertical, onde você tem a transferência do monopólio do Estado para o concessionário. E piorou com a modalidade de autorização, que praticamente tira o Estado”, afirma Gonçalves. 

Em sua tese de doutorado, em linhas gerais, ele aponta que o sistema ferroviário brasileiro segue um modelo que privilegia as empresas em detrimento do transporte de passageiros e defende a democratização das ferrovias por meio da formação de conselhos gestores que possibilitem a participação de diferentes atores na discussão sobre o tema.

“Hoje eles fazem o monopólio ferroviário e nós, da Ferrofrente, não achamos isso razoável. Abandonaram completamente a ideia do serviço de transporte ferroviário para passageiros, dificultando o acesso e dificultando investimentos”, aponta.

Questões trabalhistas

No apagar das luzes do governo de Jair Bolsonaro, a poucos dias do segundo turno das eleições, a Rumo conseguiu um acordo com a Advocacia Geral da União (AGU) que impede que seu nome apareça na Lista Suja do Trabalho Escravo. É a segunda vez que a empresa obtém tal façanha – por sinal, obtida também pela Cosan, no governo Dilma.

Em 2017, a Rumo foi condenada em R$ 15 milhões pela 1ª Vara do Trabalho de Araraquara por condições de trabalho em condição análoga à de escravo, ao manter motoristas de caminhão em jornadas de trabalho extenuantes, que chegam a 34 horas diárias.

A ação foi movida pelo Ministério Público do Trabalho com base em dois inquéritos civis instaurados a partir de operação realizada pelo MPT junto com a Polícia Rodoviária Estadual na Rodovia Washington Luiz em março de 2015. Com base nessa condenação, a empresa chegou a figurar na Lista Suja do Trabalho Escravo divulgada em 2018, mas se safou da exposição após decisão liminar que determinou a retirada da empresa até a tramitação final do processo. 

A proposta de acordo encaminhada ao final do governo Bolsonaro para homologação na Justiça do Trabalho tem por objetivo a extinção de ações judiciais relacionadas a infrações constatadas em 2010. 

Foi justamente em dezembro daquele ano que uma operação de fiscalização resgatou 51 trabalhadores dos canteiros de obras da empresa de um alojamento em Embu-Guaçu (SP) e no km 75 da Serra de Santos, no trecho da linha férrea Santos – Mairinque.

“As situações encontradas enquadram-se nas hipóteses de degradação do ambiente de trabalho e de jornada de trabalho exaustiva, configurando trabalho análogo ao de escravo”, aponta o relatório de fiscalização enviado em janeiro de 2011 ao Ministério Público do Trabalho.

“A equipe de fiscalização identificou a ocorrência de restrição aos direitos de locomoção e ameaça à integridade física dos trabalhadores, exibição ostensiva de arma de fogo, condições extremas e degradantes de trabalho e alojamento, e tráfico interno (interestadual e intermunicipal) de pessoas para fins laborais (aliciamento de mão de obra)”, descreve o documento.

O relatório aponta que, ao chegar a um alojamento, a equipe de fiscalização se deparou com um trabalhador “sofrendo seguidas convulsões decorrentes de epilepsia, sem que recebesse qualquer socorro por parte da ALL”. Socorrido por uma auditora-fiscal, o trabalhador foi removido para o Hospital Geral do Grajaú – São Paulo – SP, onde permaneceu internado por seis dias.

Os trabalhadores relatam que chegaram a ser trancados nos alojamentos, pelo lado de fora, no período noturno, e declaram que os alojamentos e as frentes de trabalho ficavam em locais “completamente isolados, sem comunicação, situados em mata fechada, sem acesso a qualquer meio de locomoção que não os trens da própria ALL, os quais somente podiam ser utilizados pelos trabalhadores mediante prévia e expressa autorização dos responsáveis da ALL”. 

Os relatos também dão conta de que o trajeto entre os alojamentos e as frentes de trabalho, de cerca de 14 km ida e volta, era realizado a pé e cada trabalhador era responsável pelo transporte das suas ferramentas durante esse percurso.

“Mesmo com anos de experiência no trato da questão, é um truísmo afirmar que poucas vezes o MPT se deparou com um caso tão absurdo de redução do homem a condição análoga à de um escravo”, aponta o Ministério Público do Trabalho (MPT) no inquérito civil que determinou a abertura da ação civil pública contra a empresa.

Segundo o MPT, a Rumo celebrou contrato de prestação de serviços com a Prumo Engenharia Ltda., que teria subcontratado a MS Teixeira Companhia Ltda. para execução das atividades do contrato.

O inquérito aponta que ao menos 40 trabalhadores foram trazidos da Bahia pela MS Teixeira. Parte dos trabalhadores ficaram abrigados em contêineres próximos à mata, em situação degradante.

O MPT aponta a culpa da ALL “ao não adotar medidas que evitassem a sonegação de direitos humanos por seus prestadores de serviço” e afirma que “o grau de culpa foi tão grave que tal culpa ao dolo se equipara”. A Procuradoria considera “incabível” a ignorância dos fatos, “hipótese que caracterizaria não a ausência de culpa, mas um ato de deliberada

cegueira”, uma vez que supervisores da ALL fiscalizavam as obras de forma constante.

Em decisão de abril de 2014, a juíza do Trabalho Maria José Bighetti Ordoño Rebello, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, aponta que os depoimentos das testemunhas da ré “deixam claro que a reclamada foi, no mínimo, negligente no que se refere à condições sub-humanas em que trabalhavam os operários na ferrovia sob sua responsabilidade”.

A juíza acata a “teoria da cegueira deliberada”, proposta pelo MPT, “visto que a reclamada possuía todas as condições para perceber o grave desrespeito aos Direitos Humanos que ocorria sob suas vistas”.

“Como bem observou o representante do Ministério Público, a omissão da ré equipara-se ao dolo. Sendo assim, não pode a demandada se furtar à responsabilidade pelos lamentáveis episódios noticiados na presente ação civil pública”.

A tramitação do processo está suspensa, aguardando uma definição do Tribunal Superior do Trabalho que discute a “definição da espécie e dois efeitos do litisconsórcio passivo nos casos de lides acerca de terceirização de serviços”. A Rumo Logística alega que, com a publicação da Lei nº 13.429/17, editada durante o governo de Michel Temer (MDB), a empresa estaria isenta de responsabilidade em relação ao crime cometido por uma terceirizada.

O Formulário de Referência da Rumo aponta esta ação entre os fatores de risco para a empresa: um resultado adverso pode representar impactos nos resultados operacionais “inclusive em razão do vencimento antecipado de contratos financeiros”, além de perdas estimadas em R$ 33,1 milhões. “Ainda a Companhia poderá estar sujeita a danos à sua imagem, prejuízo financeiro e à deterioração no preço de mercado das ações de sua emissão.”

Ferrovia passando em Terras Indígenas

Em novembro, a Rumo anunciou o início das obras de construção da ferrovia de 730 quilômetros que passará por 16 cidades no estado de Mato Grosso. A empresa assinou um acordo com o Ministério Público Federal, o governo do Mato Grosso, a Defensoria Pública e comunidades indígenas para permitir as obras.

Segundo revelou o Joio, a direção do Ibama atropelou ao menos seis vezes a área técnica do instituto para transferir ao governo de Mato Grosso o licenciamento dessa ferrovia. Ao longo de 2020 e 2021, sucessivos pareceres foram ignorados pelo diretor de Licenciamento, Jônatas Souza da Trindade. Ele deu aval à Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) para conduzir o processo relativo à linha que irá de Rondonópolis, no sudeste do estado, até Lucas do Rio Verde, no centro da produção de soja do Brasil. 

“Praticamente, é um contrato perpétuo porque a gente pode continuar renovando o contrato a cada 45 anos”, disse Ricardo Lewin, vice-presidente Financeiro e Diretor de Relações com Investidores da Rumo, durante uma entrevista a jornalistas.

A ferrovia será uma extensão do atual corredor da Rumo, que vai do porto de Santos (SP) a Rondonópolis, desaguando naquilo que a empresa apresenta como “o maior terminal de grãos do mundo”, com capacidade para dois mil caminhões por dia.

Um documento da Rumo mostra como a nova ferrovia tem um papel estratégico para expandir a “área de influência” dentro do Mato Grosso: até 2030, a empresa espera que em torno de 60% das exportações de grãos do estado estejam a no máximo duzentos quilômetros da malha ferroviária, o triplo da situação atual. Nas palavras de Ricardo Lewin, vice-presidente Financeiro e Diretor de Relações com Investidores, trata-se do “grande propulsor para o crescimento da Rumo na próxima década”.

Para piorar a situação, o traçado da ferrovia passará entre as duas terras-irmãs da etnia Bororo, Tadarimana e Teresa Cristina, com a conivência da Fundação Nacional do Índio (Funai)

Em documento, a própria Rumo menciona o Ofício nº 935/2021, no qual “a Funai afastou a necessidade de instauração de procedimentos específicos relacionados à questão indígena, considerando que as Terras Indígenas mais próximas estão localizadas em distância superior ao que preconiza a Portaria Interministerial nº 60/2015 e Instrução Normativa FUNAI nº 02/2015.”

No final de novembro deste ano as ações da Rumo (RAIL 3) subiram 3% depois que a XP Investimentos, um dos maiores atores do mercado financeiro, avaliou a empresa de forma positiva. Analistas da XP estiveram em Mato Grosso e apontaram expectativas otimistas em relação ao projeto de extensão de Lucas do Rio Verde. 

“Saímos da visita com uma impressão positiva no ambiente de negócios no estado”, manifestou a empresa. A XP concluiu que o “ambiente político/regulatório é saudável no estado” e confirmou fortes perspectivas de alta de volume e tarifa para a receita da Rumo em 2023. “O projeto de LRV deve enfrentar um processo de licenciamento ambiental tranquilo e ser o projeto ferroviário dominante na região no futuro previsível.” Tranquilo e favorável. Como se vê, o mercado financeiro tem uma definição peculiar da palavra “saudável”. 

Fonte: O Joio e o Trigo
Texto: Leandro Melito
Data original da publicação: 10/01/2023

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