O dia 20 de novembro deveria ter marcado o início de uma era de segurança jurídica, transparência e desburocratização da política migratória para o Brasil, com a entrada em vigor da nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017). Afinal, quando pôs abaixo o Estatuto do Estrangeiro (de 1980), o texto aprovado pelo Senado em 18 de abril deste ano tirou do imigrante o rótulo de ameaça aos interesses nacionais e à segurança pública e o elevou à condição de um ser humano pleno de direitos, contrabalançados por obrigações civis, penais e tributárias.

“EM UM MUNDO NO QUAL SE FALA DE MUROS, IMPEDIMENTOS E RESTRIÇÕES, NÓS ESTAMOS INDO JUSTAMENTE NA DIREÇÃO CONTRÁRIA. A GENTE PROCURA MOSTRAR QUE A INTEGRAÇÃO, A GLOBALIZAÇÃO NÃO É SOMENTE ECONÔMICA, É A GLOBALIZAÇÃO DA CONVIVÊNCIA ENTRE OS POVOS” — SENADOR TASSO JEREISSATI (PSDB-CE), RELATOR DO PROJETO NO PLENÁRIO, EM JUNHO DE 2017.

Apesar de a Lei de Migração ratificar a Constituição Federal, como observou à TV Senado a professora de direito internacional da Universidade de Brasília Carolina Claro, o decreto de regulamentação (Decreto 9.199/2017) acabou por colocar restrições à garantia dos mesmos direitos a todos.

Tasso: globalização não é apenas econômica, mas também de convivência entre os povos (Geraldo Magela/Agência Senado)
                   

A extensão dos efeitos do decreto ainda está por ser medida, mas as reações contrárias foram imediatas. A norma reduz os benefícios previstos na lei e diminui o enfoque humanitário, conforme se queixam parlamentares, especialistas, organizações internacionais e a Defensoria Pública da União.

A LEI DE MIGRAÇÃO VEIO PARA EQUIPARAR OS DIREITOS DOS IMIGRANTES COM OS DIREITOS DOS NACIONAIS BRASILEIROS. MAS A FORMA COM QUE O DECRETO DE REGULAMENTAÇÃO FOI PREPARADO, ESTABELECE NOVAS DISCRIMINAÇÕES E ATÉ CRIMINALIZA O FATO DE SER IMIGRANTE. ISSO PODE SER UM RETROCESSO FRENTE À LEGISLAÇÃO — DEPUTADA MARIA DO ROSÁRIO (PT-RS).

Ao contrário do projeto que tramitou no Congresso Nacional, construído com ampla participação da sociedade civil e organizações internacionais, o decreto foi redigido “a portas fechadas, sem nenhuma participação da sociedade”, segundo Carolina Claro. O governo realizou apenas uma audiência para tratar do tema e disponibilizou a minuta do decreto em uma consulta pública considerada insuficiente pelos atores envolvidos com o assunto.

— O decreto é extremamente discricionário. Independente de correntes políticas, todos no Senado sabiam da importância de se admitir estrangeiros no Brasil, de regularizar sua situação migratória e garantir seus direitos e obrigações com relação a Constituição— reclama a professora da UnB.

               

Carolina Claro: decreto foi elaborado sem a participação da sociedade (foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)
               

O defensor público da União, Gustavo Zortea vai além e defende que alguns artigos do decreto geram, inclusive, um problema de legalidade. No artigo 123 da Lei de Migração, exemplifica, está previsto: “Ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias”. Já o artigo 211 do decreto diz que “o delegado da Polícia Federal poderá representar perante o juízo federal pela prisão ou por outra medida cautelar”.

— Não [se] pode estabelecer uma medida cautelar sem que haja uma lei que conforte essa medida cautelar. Nesse ponto, nos parece que o decreto foi além do que poderia. O argumento legal, à rigor, é que a lei disse menos do que talvez gostaria de ter dito — raciocina Zortea.

Outro ponto controverso diz respeito à expulsão do imigrante. O artigo 54 da lei estabelece que a condenação com sentença transitada em julgado poderá dar causa à expulsão do estrangeiro. O decreto, por outro lado, abre a possibilidade de se instaurar um procedimento de expulsão antes de uma decisão da justiça para a qual não haja mais recurso.

— Há situações em que a pessoa é condenada em primeira instância, mas absolvida em segunda. Então, vão abrir um inquérito de expulsão com base numa condenação de primeira instância? Se a pessoa for absolvida, vão instaurar um inquérito policial de expulsão ao condenado de uma forma absolutamente desnecessária — argumenta Zortea.

Independentemente do decreto, um dos principais benefícios trazidos pela lei, do ponto de vista da Organização Internacional para Migrações (OIM), é a desburocratização das “avenidas migratórias”, termo utilizado em referência aos caminhos enfrentados pelos imigrantes para entrar regularmente no país. A lei extingue o visto permanente, mas oferece a possibilidade do visto temporário, que pode ser concedido a estrangeiros com o intuito de estabelecer residência no Brasil por diferentes motivos, e, inclusive, por acolhida humanitária e reunião familiar.

— Essa alternativa é mais segura para os imigrantes e mais segura para o Estado brasileiro. Quanto mais imigrantes chegarem regularmente, mais imigrantes estarão protegidos pelo Estado e menos vulneráveis às redes criminosas — explica Marcelo Torelly, da Organização Internacional de Migração (OIM).

                                 

Medidas de retirada compulsória

O texto estabelece o fim a prisões por razões migratórias e a deportações imediatas. Antigamente, qualquer imigrante sem a documentação correta poderia ser privado de liberdade e, consequentemente, deportado por estar ilegal no país. Agora, pessoas que estejam ilegais em território brasileiro serão autuadas e terão direito a assistência jurídica pela Defensoria Pública para tentar permanecer no país.

São três tipos de retirada compulsória: a repatriação, a deportação e a expulsão. A repatriação — processo de devolução do estrangeiro indocumentado ao seu país de origem — ocorre quando o imigrante é impedido de ingressar em território nacional pela fiscalização fronteiriça e aeroportuária brasileira. Os custos desse trâmite são bancados pela transportadora que trouxe o imigrante ao país. De acordo com o Estatuto do Estrangeiro, pessoas nessa situação deveriam ser deportadas. Ou seja, retiradas do país pela Polícia Federal.

Isso não acontecerá com estrangeiros sem os documentos adequados na fronteira e que estejam em situação de refúgio. O mesmo vale para os que não tenham pátria, aqueles que necessitem de ajuda humanitária ou as crianças desacompanhadas. Todos serão acolhidos no Brasil.

Visto temporário: lei permite acolhida por razões humanitárias ou familiares (foto: Angela Peres/Secom-AC)

                      

Com base no revogado Estatuto do Estrangeiro, qualquer imigrante poderia ser expulso do país sem justificativa relevante, podendo ser acusado de ferir a moral, os interesses nacionais ou até mesmo de praticar alguma inconveniência. A expulsão, agora, passa a ser um recurso a ser utilizado somente nos casos em que o imigrante cometa um crime passível de pena privativa de liberdade.

A expulsão tinha um caráter perpétuo, salvo quando revogada por um decreto do Poder Executivo. Com a nova lei de migração, o estrangeiro expulso fica proibido de retornar ao país pelo dobro do tempo da condenação.

O Estatuto do Estrangeiro impedia a regularização do imigrante que estivesse ilegal no país. Agora, pessoas nessa situação podem solicitar autorização de residência alegando diversos motivos, como a necessidade de tratamento de saúde; o engajamento em um trabalho; e a chance de se reunir à sua família. A solicitação também poderá ser apresentada como um meio de obter acolhida humanitária.

                  

Oportunidades

São inúmeros os motivos que levam uma pessoa a abandonar o país de origem em busca de um recomeço como imigrante em locais com cultura e idioma diferentes do habitual. Muitos fogem da fome, da miséria e da repressão política. Outros migram devido a desastres naturais, e até em busca de melhores oportunidades econômicas.

Os estrangeiros que chegam ao Brasil para morar são, em sua maioria, de países fronteiriços, como Bolívia, Colômbia e Argentina. Eles vêm principalmente em busca de trabalho. Em razão de acordos com países da América do Sul é possível entrar no Brasil com alguns tipo de documentos de identidade, o que pode dificultar o levantamento estatístico de estrangeiros que não tenha obtido permissão legal de trabalho.

                       

Crise econômica alterou perfil do trabalhador estrangeiro

Desde 2010, o Brasil tem sido um destino importante para os haitianos, devido à situação crítica que se instaurou naquele país após o terremoto de janeiro do mesmo ano, causando 230 mil mortes e deixando mais de 300 mil pessoas feridas.

Cerca de 73 mil haitianos pediram refúgio no Brasil entre 2010 e 2016. Ocorre, porém, que a situação de refúgio não se enquadra em casos que envolvem questões econômicas e ambientais. Refugiados são pessoas que sofrem algum tipo de perseguição individual motivadas por opinião política, raça, nacionalidade ou pessoas que fogem de uma violação generalizada de direitos humanos. Os refugiados inclusive não estão submetidos a Lei de Migração, e sim à Lei 9.474/1997.

Para superar esse obstáculo legal, mesmo sem previsão no Estatuto do estrangeiro, o Brasil já vinha concedendo vistos humanitários aos haitianos.

— A nova lei avança no sentido de formalizar essa que já é uma boa prática do Estado brasileiro — avalia Marcelo Torelly.

                    

                         

Cooperação

Em matéria de cooperação internacional, a nova lei autoriza acordos por meio dos quais um imigrante condenado no Brasil possa cumprir, em seu país de origem, pena diferente daquela imputada a ele aqui. Da mesma forma, um brasileiro residente no exterior poderá ser transferido para o Brasil, obtendo, por exemplo, a comutação da pena de prisão perpétua em privação temporária de liberdade. É o que explica o consultor do Senado Tarciso dal Maso:

— Nós não podemos legislar para uma aplicação no exterior, mas há mecanismos para facilitar a volta dessa pessoa, permitir que se faça acordos.

                   

Governança

O Brasil não tem um órgão único responsável pelo atendimento ao estrangeiro. Questões relativas a migrações são atendidas pelos Ministérios da Justiça e Segurança Pública, Relações Exteriores e do Trabalho. E ainda pela Polícia Federal.

Essa variedade de instituições causa problemas no acesso a informações corretas pelos imigrantes. O francês Paul Sepaniak, atualmente de volta a seu país, chegou a Brasília em 2012 com o objetivo de empreender no setor gastronômico. Ele conta que, logo de início, esbarrou na falta de informação.

— O processo do visto foi complicado e demorou. Me passaram uma lista errada de documentos que precisava. Paguei, inclusive, taxas erradas. Até hoje, não consegui ser reembolsado desse dinheiro — relembrou no dia 14 de novembro, em entrevista pelo watsapp, antes de viajar ao Brasil para entregar o apartamento alugado e o imóvel no qual funcionava o restaurante.

Sírios no Rio de Janeiro: lei prevê criação de Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (foto: Fernando Frazão/ABr)
                    

A Lei de Migração até fala na criação de uma Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia para coordenar e articular ações setoriais a serem implementadas pelo Poder Executivo em regime de cooperação com os outros entes federados. Contudo, no decreto de regulamentação não há menção sobre qual órgão será o responsável por articular essa política.

Durante a consulta pública para discutir a minuta do decreto, a OIM sugeriu três modelos para essa política: a criação de uma autoridade migratória; a atribuição da responsabilidade de articulação a algum dos órgãos já existentes; ou a criação de uma estratégia de gestão migratória. Nenhuma sugestão foi acolhida.

— Quando trabalhamos com a questão da governança migratória, entendemos que não existe um modelo único a ser seguido, mas essas três alternativas poderiam funcionar — observou Marcelo Torelly.

Marcelo Torelly: não há modelo único para enfrentar a questão migratória (foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)
                              

Por causa dos atropelos burocráticos que a lei e o decreto parecem distantes de resolver, Paul Sepaniak , o chef desiludido com o Brasil deixa um conselho:

— O caminho até as informações poderia ser mais simples e os preços, tabelados.

                  

Brasileiros no exterior

Apesar do nome da nova lei fazer alusão a migrações, apenas quatro dos 126 artigos tratam dos brasileiros no exterior, em duas seções: políticas públicas e direitos. No primeiro, é garantido assistência consular, por meio das representações do Brasil no exterior, e atuação diplomática. Está previsto ainda a promoção de estudos e pesquisas sobre as comunidades de brasileiros no exterior, a fim de subsidiar a formulação dessas políticas.

Com relação aos direitos desses cidadãos, fica assegurado, no seu retorno ao país, a isenção de taxas de importação e aduaneiras sobre bens de consumo adquiridos durante a estadia fora. Há, ainda, um artigo que dá aos tripulantes brasileiros contratados por embarcações ou armadora estrangeira o direito à seguros contra acidentes de trabalho, invalidez total ou parcial e morte junto a seguradoras brasileiras.

estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o número de brasileiros no exterior é de aproximadamente 500 mil. Já o número apurado pelo Ministério das Relações Exteriores é de 3,08 milhões, segundo um levantamento de 2016. Em Boston e Nova Iorque, respectivamente, residiriam 350 mil e 285 mil pessoas.

De acordo com o Itamaraty, a estimativa “atualizada” de brasileiros no exterior” levou em consideração os relatórios dos consulados e embaixadas. “Tendo em consideração que grande parte desses brasileiros encontra-se em situação migratória irregular e evita submeter-se a sondagens e censos, ou mesmo matricular-se nas repartições consulares, é difícil fazer tais avaliações”.

                

Nova Iorque está entre as cidades com maior número de brasileiros (foto: Chanilim714)
                  

O quadro só é mais favorável no Japão, “onde praticamente toda a comunidade brasileira está regularizada e computada em estatísticas oficiais”. O número final arbitrado pelo órgão em 2012, de cerca de 2,5 milhões de brasileiros, representou uma redução de aproximadamente 30% em relação aos divulgados pelo Itamaraty em 2008, calculados com base nos relatórios consulares daquele ano. A redução foi considerada factível dado que o país vivia uma “nova situação econômica”, com “novas oportunidades de emprego” em contraste com as crises e dificuldades financeiras experimentadas nos países de acolhida de brasileiros, fonte de “controles migratórios mais rígidos”

Para chegar à sua estimativa, o Itamaraty observa uma série de variáveis: desde os dados oficiais fornecidos por autoridades migratórias locais até o número de eleitores registrados na jurisdição e solicitações de passaportes e outros documentos por brasileiros. A compilação das respostas pelo IBGE “subestimou, assim como costumam fazer outros censos oficiais, o tamanho da diáspora brasileira”, conforme o MRE. Um exemplo, calculou em cerca de 60 mil o número de brasileiros no Japão, “quando se sabe comprovadamente que somam hoje mais do que 200 mil", ainda de acordo com o órgão.

O próprio IBGE reconhece que é necessário dar novos passos para uma pesquisa mais apurada e aprimorar os dados já existentes.

                       

Serviço

Ministério da Justiça e Segurança Pública:
Efetua o processamento de pedidos referente a nacionalidade e naturalização, entrada e permanência e refúgio. As demandas devem ser encaminhadas por meio digital, para o e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

Ministérios das Relações Exteriores (Itamaraty):
Representa a comunidade brasileira no exterior, protegendo e prestando assistência aos cidadãos brasileiros. Serviço consular pelo e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. ou por telefone (+55 61 2030-8800).

Ministério do Trabalho:
Concede pedidos de Autorização de Trabalho. As solicitações só podem ser encaminhadas de forma física. É necessário, no entanto, realizar um pré-cadastro no Sistema Migranteweb.

Polícia Federal:
Coordena a entrada e saída dos imigrantes.

              

Saiba Mais

Lei de Migração (Lei 13.445/2017)
Decreto de regulamentação (Decreto 9.199/2017)
Perguntas frequentes sobre o Mercosul

                       

Fonte: Agência Sindical, 04 de dezembro de 2017