Desacerto na forma de resolver conflitos produz desastres como incapacidade de combater epidemia de assassinatos

O Brasil sofre de um desajuste crônico que, agravado ao longo dos últimos anos, tem produzido crises e ameaçado a própria arquitetura civilizacional. Falta um consenso de longo prazo sobre o regulamento do jogo coletivo.

Estamos na prática em desacordo com os princípios de “fair play” das sociedades abertas, tais como: dinheiro público flui com prioridade para a emancipação dos pobres; empresas seguem as mesmas balizas de tributação e competição; derrotas na arena civil são aceitas como um fato da vida adulta, reversíveis apenas dentro das regras.

Porque impera a lei do mais forte nas relações com o Estado, a despesa previdenciária concentra renda e exige cada vez mais esforço de toda a sociedade para financiá-la.

Porque algumas empresas obtêm vantagens tributárias e competitivas, o governo arrecada menos, e o PIB cresce aquém do que poderia.

Porque os recursos não são canalizados com prioridade para crianças e jovens carentes, e porque mecanismos corporativistas travam a eficiência do ensino público, o ciclo da baixa produtividade e da elevada desigualdade salarial se repõe.

Porque o orçamento dos estados se consome cada vez mais com servidores inativos, como mostrou a Folha no domingo (19), a capacidade de organizar os sistemas de polícia e Justiça se deteriora. Diminui a possibilidade de resposta adequada à matança de brasileiros, que corre à velocidade de 64 mil por ano.

Quando os economistas, na sua dicção enregelada, enfatizam a preocupação com o ponto extremado a que chegou a chamada crise fiscal no Brasil, é na verdade de algo bem fundamental que estão a falar.

Há um desacerto no modo como temos convivido, na forma de encaminhar e resolver os principais conflitos internos, que produz desastres bastante concretos na sociedade e turva a perspectiva do futuro.

Não há solução técnica que dê conta de superar esse dilema. É de política que se trata.


Vinicius Mota - Secretário de Redação da Folha, foi editor de Opinião. É mestre em sociologia pela USP.
Fonte: Folha de S.Paulo, 21 de agosto de 2018.