CRIME E CASTIGO

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Muito se discute no país acerca do erro ou do acerto de se executar a pena aplicada logo após condenação em segundo grau e antes do trânsito em julgado da decisão. 

Antes de mais, é preciso retirar da discussão dogmática toda a carga metajurídica - partidária ou afetiva - que tem invadido o debate. Afastar a discussão do senso comum desbotado, e às vezes insano, é a melhor forma de preservar a coerência. Uma simples análise histórica fará perceber que a atual pauta dos assim denominados de “direita” - começo da execução determinada após julgamento em 2ª instância - já foi bandeira de primeira passeata para os ora rotulados de “esquerda”.

Quando se trata de prisão após decisões das Cortes de Apelação, boa parte dos movimentos políticos que se propõem no Brasil não possui qualquer coerência histórica. Isso, por si só, já seria o bastante para alertar todo jurista quanto ao fato de não se poder sustentar teses em função da vitória de uns, ou em razão da derrota dos prováveis adversários. Judiciário e dogmática penal precisam se libertar urgentemente da narrativa política e do discurso moralista.

A questão juridicamente posta tem outros contornos e somente a coerência nos levará a algum porto seguro. Após duas decisões do Supremo Tribunal Federal – HC 68.726/1991, Rel. Min NERY DA SILVEIRA e HC 126.292/2016, Rel. Min. TEORI ZAVASKI - este último desfazendo a proeminência do precedente HC 84.078/2009, Rel. Min. EROS GRAU, diversos julgados do STJ e também decisões dos Tribunais de Apelação passaram a determinar o cumprimento de pena imediatamente, antes do trânsito em julgado e após decisão condenatória de segunda instância.

A antecipação do momento da execução da condenação, para que comece antes do trânsito em julgado - mas na pendência de recurso sem efeito suspensivo - não se confunde com prisão cautelar. É a própria execução da pena que se inicia, motivo pelo qual não se discutem prevenção, condições pessoais do condenado ou gravidade concreta do fato delituoso. 

Esta é uma das principais razões pelas quais não faz sentido dogmático manter uma regra de exceção, para que os Tribunais de segundo grau deixem de determinar a execução imediata, em alguns casos. Não se trata de possibilidade a ser excepcionada por qualquer descrimene do Juízo; não se trata de utilização de qualquer característica individual do delinquente. É uma condenação e não cabe deixar exatamente para quem condenou o réu a decisão de executar ou não.

O julgador não tem poder de excepcionalizar sua própria decisão ou de escolher se a executa ou não. Se houver dúvida quanto à autoria e à materialidade, o caminho é a absolvição, jamais a suspensão da execução da condenação. E mesmo em caso de discutível constitucionalidade essa exceção não faria sentido, já que o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade é difuso. Caso o Tribunal  encontre inconstitucionalidade na norma que aplica deverá declara-lá, e não determinar a suspensão de sua execução. Se o Tribunal tem convicção, condena e executa. In dubio, sempre a favor do réu.

Neste ponto, a coerência é fundamental e - com perdão conferido em razão da linguagem coloquial - a execução deverá valer para todos: “pau que bate em Chico, bate em Francisco”. E com licença poética prévia, a execução antecipada deverá valer para “gregos e baianos, filisteus e soteropolitanos”. A exceção gera casuísmo, e quiçá protecionismo ou perseguição. 

A lei deverá ser aplicada a todos. Não pode haver lista de Schindler. 
Essa execução pode ser tomada como provisória, ou como definitiva na pendência de recurso sem efeito suspensivo, mas sempre se dá antes do trânsito em julgado, após o esgotamento das instâncias ordinárias, e efetivamente não se mistura com as hipóteses de cabimento da prisão cautelar.

Parece ser mais correta a expressão “execução definitiva”, porém na pendência de recurso sem efeito suspensivo. Definitiva porque o tempo no cárcere não pode ser expurgado acaso a decisão futura dos tribunais superiores seja absolutória. A decisão de executar antes do trânsito em julgado é uma escolha política de uma sociedade. É uma questão de política legislativa. Está dentro da racionalidade jurídica.

É dogmaticamente sustentável porque não há óbice constitucional, na medida em que o artigo 5º, LVII, da Carta Magna prescreve que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, mas não afirma que a pena só começará a ser executada após a declaração definitiva de culpa.

Obviamente que aqui se suscita uma questão de natureza moral, mas não jurídica: é possível executar a pena imposta a alguém que não foi ainda definitivamente considerado culpado?

A lei pode prever esta possibilidade, e o contrário também não é absoluto, pois o condenado nunca terá sua condenação absolutamente definitiva - a não ser dentro do processo - vez que ainda haverá Revisão Criminal e as janelas do habeas corpus contra coisa julgada, abolição do crime, graça e indulto. Estes três últimos ainda que não alterando a coisa julgada anterior, mas modificando seus efeitos. 

Convém lembrar - se for o caso de inserir no debate questões metajurídicas - que para as classes menos favorecidas isto já é uma realidade. O réu já está comumente preso cautelarmente e, não raro,  sem fundamento preventivo - desde a primeira abordagem da polícia. Metajuridicamente argumentando, o problema só se põe em crimes cujo autor não é periférico social, ou seja, para crimes raramente praticados por excluídos sociais ou preteridos urbanos. Quando muito, o agente é integrante da classe média. 

Assim, mantendo-se a questão no plano da juridicidade, não há óbice constitucional à execução antes do trânsito em julgado da decisão.
A construção levada a efeito pelo STF tão somente deixa assentado que no modelo constitucional brasileiro é possível começar a execução penal antes da certeza processual da culpa. Por mais que pareça uma consequência principiologicamente frágil, ou moralmente questionável, ela é dogmaticamente sustentável.

O óbice não é constitucional, mas sim de ordem legal, na medida em que o artigo 283 do Código de Processo Penal prescreve que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Assim, ao determinar a prisão para execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão, o Judiciário estará desconsiderando a letra expressa do Código de Processo Penal, na medida em que a disposição é clara. Não há ofensa à Constituição.

A construção argumentativa que também não vê óbice infraconstitucional e determina o imediato cumprimento após decisão da Corte de Apelação tem por base o mesmo Código de Processo Penal que estabelece a ausência de efeito suspensivo para recursos especial e extraordinário. Prescreve o dispositivo: “Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.”

A interpretação conjunta de ambos os artigos permite crer que, não havendo efeito suspensivo no recurso interposto, executa-se desde já a decisão de segundo grau, pois os efeitos decorrentes do ulterior trânsito em julgado seriam antecipados, em razão de não haver óbice à sua realização.

Por outro lado, o próprio Superior Tribunal de Justiça entendeu que a necessária execução provisória, ou definitiva sem efeito suspensivo, após decisão condenatória de segundo grau não se dá nos casos de penas alternativas, mas somente quando for o caso de penas privativas de liberdade.

O posicionamento do STJ prioriza a ideia de que qualquer antecipação de execução só pode se dar nos exatos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal. Não caberia ao Superior Tribunal de Justiça dizer o que o STF não disse. Contudo, parece razoável executar de logo as penas que não implicam encarceramento na medida em que são menos gravosas do que as privativas de liberdade.

Não parece ser correto que o condenado à pena mais grave comece a cumprir a segregação imediatamente após a decisão da Corte de Apelação e ao condenado à pena mais branda, alternativa, lhe seja facultado o cumprimento após decisão do STF com trânsito em julgado. Porém, isto também é uma abordagem metajurídica. 

Ocorre que diversas decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal modificam o entendimento do STJ e são no mesmo sentido da possibilidade de ampla execução: RE 1158593, Relator Min. CELSO DE MELLO, julgado em 24/10/2018, publicado em processo eletrônico DJe-235 divulgado 05/11/2018 PUBLIC 06/11/2018; RE 1169582, Relator, Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 30/10/2018, publicado em processo eletrônico DJe-236 Divulgado 06/11/2018, publicado 07/11/2018; RE 1153920, Relator Min. LUIZ FUX, julgado em 23/11/2018, publicado em processo eletrônico DJe-252 DIVULG 26/11/2018 publicado 27/11/2018; RE 1172224, Relatora Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 18/12/2018, publicado em processo eletrônico DJe-023 divulgado 05/02/2019 PUBLIC 06/02/2019.

Não só decisões monocráticas do STF assim o dizem, como também colegiadas. Em momento posterior à fixação de entendimento da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, uma decisão da Primeira Turma do STF - por maioria vencido o Min. MARCO AURÉLIO - veio à lume ratificando a posição segundo a qual a execução do julgado antes da definitividade se dá para todas as modalidades de pena aplicadas. Cuida-se do AG.REG. no RE 1.161.581 Relator Min. ALEXANDRE DE MORAES. 

Desta maneira, a dogmática penal brasileira construiu  execução de pena condenatória antes do trânsito em julgado, logo, é este o modelo vigente. 
Outras leituras podem ser feitas da execução de penas imediatamente após o esgotamento das vias ordinárias. Essa é apenas uma visão possível, porém a que conta com a chancela do Supremo Tribunal Federal. 

 é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

Revista Consultor Jurídico