OPINIÃO

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No dia 8 de junho, fez aniversário de 70 anos a primeira edição de 1984, de George Orwell. No dia 9, irrompeu no Brasil o escândalo da divulgação de ajuste de estratégias de persecução penal entre juiz e Ministério Público na operação "lava jato". No dia 18, Donald Trump fez seu primeiro comício como candidato à reeleição, no qual afirmou que os democratas são socialistas. No dia 20, realizou-se em São Paulo a anual Marcha para Jesus, e nela discursaram o governador paulista e o presidente da República, que, em um evento religioso, provocou risadas ao encenar um fuzilamento. No dia 25, corre o mundo foto de jovem pai e filha de menos de 2 anos encontrados mortos abraçados ao tentarem a travessia do rio Grande, na fronteira entre o México e EUA. E basta de junho de 2019!

O repúdio às atrocidades da extrema direita na primeira metade do século XX levou, após 1945, à valorização dos direitos humanos e, em especial, diante da exclusão da proteção jurídica aos judeus pelo Direito da Alemanha nazista, à valorização da dignidade da pessoa humana.

No entanto, no início do século XXI, a extrema direita renasce como força política muito significativa[1] e logicamente não poderia deixar de combater seu antídoto elaborado após a 2ª Grande Guerra: o avanço civilizatório no sentido da proteção aos direitos humanos. Nesse contexto político, tem curso a campanha contra refugiados e pessoas que a mídia insiste em chamar de “imigrantes ilegais”[2], as quais, como os judeus na Alemanha nazista, são tratadas como coisas e excluídas de proteção jurídica, numa afronta ao cerne da ideia de dignidade da pessoa humana.

No Brasil, em 2018, candidatos foram eleitos com discurso ostensivamente contrário aos direitos humanos, de que resultou a proposta de “licença para matar” no chamado “pacote anticrime” do ministro da (in)Justiça[3].

Na mesma direção marcha a “política do abate” no Rio de Janeiro, marcada por surreal, ridículo e aterrorizador vídeo em que, numa operação policial no início de maio, realizada sob o comando direto do governador, a esmo e sem motivos é disparada rajada de balas contra uma tenda de orações de evangélicos[4].

A “política do abate” também é marcada por tragédias próximas ao dia do belicoso voo de helicóptero do governador: o fuzilamento, pelo Exército, em 7 de abril, do carro no qual a família do músico Evaldo dos Santos dirigia-se a um chá de bebê, resultando na morte do músico e do herói que tentou ajudá-lo, o catador Luciano Macedo; e o assassinato, pela polícia carioca, em 14 de maio, do professor de jiu-jitsu Jean Rodrigo da Silva, cuja mãe deixou para a história indagações icônicas de nossos tempos: “Quando a polícia vai parar de matar os trabalhadores, pais de família? Meu filho tinha quatro filhos. Quem vai sustentá-los?”.

Esse decadente mundo de início de século cada vez mais lembra o de 1984. Para demonstrá-lo, basta citar um episódio que se passa ainda no início da obra-prima de George Orwell:

“(...) bombardeio de um navio cheio de refugiados em algum lugar do Mediterrâneo. (...) um bote salva-vidas cheio de crianças com um helicóptero pairando logo acima. Tinha uma mulher de meia idade talvez uma judia sentada na proa com um garoto de uns três anos no colo. Garoto chorando de medo e escondendo a cabeça entre os seios dela, (...) e o tempo todo cobria o garoto o máximo possível como se achasse que seus braços iam conseguir protegê-lo das balas. Aí o helicóptero largou uma bomba de vinte quilos bem no meio deles...”[5]

Sim. Orwell profetizou até mesmo o padecimento dos refugiados no Mediterrâneo, onde, em 2015, se afogaram os irmãos Aylan (3), Galib (5) e sua mãe, Rihan Kurdi (35), fugindo da guerra na Síria.

A foto de Aylan deitado de bruços sem vida em uma praia turca é uma das mais tristes e desesperadoras imagens da história. Ela e, agora também, a foto e vídeo de pai e filha abraçados no rio Grande podem representar o fim da picada da humanidade. Depois daqueles afogamentos, talvez não haja mais veredas a percorrer neste grande sertão.

O quadro pré-apocalíptico desse início de século faz com que a atualidade lembre muito também a Bíblia, a começar pelo destaque que, nele, tem a mesma região onde se passa a narrativa bíblica. No Oriente Médio viveram Jesus e o autor de grande parte do Novo Testamento: um judeu romano nascido em Tarso, na Turquia, estava a caminho de Damasco, na Síria, quando lhe apareceu Cristo e o converteu no grande pregador da boa-nova para judeus e gentios, para toda a humanidade. Depois, o Apóstolo Paulo navegou muito e também naufragou muito na região em que foram afogados os Kurdi a despeito do seguinte trecho do Evangelho de Lucas: “Qualquer que receber este menino em meu nome, recebe-me a mim; e qualquer que me receber a mim, recebe o que me enviou” (9:48).

O Antigo Testamento, se possível resumi-lo em uma frase, poderia ser esta: Deus tentando convencer o povo hebreu a aceitá-lo como deus único (e, portanto, a cultivar a bondade acima de tudo). E Ele se incomoda: basta mencionar que após ter até mesmo aberto o Mar Vermelho para eles atravessarem, judeus fazem um bezerro de ouro para adorarem (Êxodo 31-32). O texto bíblico chega a parecer redundante tamanha a insistência na temática da tentativa de o Pai convencer os hebreus. Mera aparência.

Quem é o presidente americano hoje senão um cidadão que, durante sua campanha eleitoral, era enfaticamente adjetivado de bilionário? Adoradores da riqueza acima de tudo entronaram na Casa Branca um sacerdote do bezerro de ouro; em seguida, evangélicos elegeram um admirador dele presidente do Brasil, e judeus elegeram um parlamento que permitiu a recondução de outro aliado do presidente dos EUA para primeiro-ministro de Israel.

Nos três casos, a religião foi usada com fins políticos. Mas a propaganda conseguiu fazer com que judeus e evangélicos optassem por aqueles políticos, não obstante o episódio do bezerro de ouro conste da Torá e os evangelhos previnam contra quem se comporte como anticristo:

Acautelai-vos, que ninguém vos engane. Porque muitos virão em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo; a muitos enganarão. Porque hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os escolhidos. Eis que de antemão vo-lo tenho dito. (Mateus 24:4-5, 24-26).

A despeito do aviso do próprio Cristo e da antiquíssima narrativa do bezerro de ouro, como se o mundo já não estivesse ruim o bastante, à semelhança de uma praga bíblica figuras obscurantistas, desatinadas e autoritárias ascenderam politicamente via voto neste início de século, desvirtuando e pisando as instituições democráticas.

Tais políticos manifestam tão perfeitamente práticas do totalitarismo representado em 1984 que parecem tê-lo utilizado como uma espécie de manual, onde aprenderam a difundir o “duplipensar”, a sistematicamente distorcer a realidade e reescrever a história (como ao afirmarem que os democratas americanos, a Venezuela, PSDB e PT são socialistas ou comunistas e que não houve golpe nem instauração de uma ditadura militar no Brasil em 1964), a transformar adversários políticos no inimigo a ser preso e destruído, a combater o pensamento[6] e fomentar o ódio na sociedade também como meio de tomada e manutenção do poder político. Tudo isso ostentando a Estrela de Davi e a Cruz! Aqui, seu mais grave erro.

Voltando à tragédia na fronteira que separa ricos e miseráveis, casa grande e senzala, os EUA e seu quintal latino-americano: nestes tempos sombrios, certamente haverá quem culpe a criança e seu pai por terem morrido afogados abraçados. Para essas pessoas, talvez não haja mais salvação. Mas a maioria é capaz de dizer não a que desçamos novamente ao fundo do poço da barbárie em que o nazifascismo lançou uma humanidade atordoada pela “banalidade do mal”:

Há alguns anos, ao relatar o julgamento de Eichmann em Jerusalém, falei da ‘banalidade do mal’, e com isso não me referia a nenhuma teoria ou doutrina, mas a algo completamente factual, ao fenômeno dos atos malignos, cometidos numa escala gigantesca, (...) não era estupidez, mas uma curiosa e totalmente autêntica incapacidade de pensar[7].

Não podemos perder a capacidade de pensar: 2 mais 2 continuam sendo 4.

Não há tempo também para permitir violações aos direitos humanos, descuidar das instituições democráticas ou admitir ameaças à existência do Estado Democrático de Direito.

Não há mais tempo para dúvidas, cinismo ou tentativa de composição com as forças contrárias à civilização. Esta pode ser a última vereda: a humanidade devolver as políticas de extrema direita às cinzas de onde não deveriam ter saído. Do contrário, a barbárie avançará em um mundo com enorme arsenal nuclear e problemas ambientais gravíssimos, enfim, em um mundo mais frágil e mais perigoso do que o da primeira metade do século XX.


[1] A ressurreição de políticas semelhantes ao nazifascismo é bem representada no filme alemão Er ist wieder da (Ele está de volta), de 2015. O filme exibe em seu início a chave para a interpretação da ascensão da extrema direita: uma espécie de prólogo em que o Hitler literalmente renascido das cinzas tem aula de etiqueta na qual aprende que não cai bem hoje a saudação nazista. Vale dizer: abandonam-se os signos do nazifascismo, mas preserva-se e atualiza-se seu conteúdo, como o demonstra o ataque à democracia, o abandono do Direito Penal liberal e sua substituição por um Direito Penal que reflita “a voz das ruas” (“sentimento do povo” na doutrina penal nazista), a radical defesa do capital (motivo do desprezo ao meio ambiente pelo Governo Trump e pelo governo brasileiro, este em favor do agronegócio), a oposição aos movimentos dos trabalhadores, ódio a comunistas (ainda que inexistentes), a intolerância, perseguição aos opositores, beligerância, propaganda, campanhas contra grupos sociais (como os imigrantes, árabes e LGBTs), ataque ao conhecimento e a construção midiática de um grande líder (o Big Brother, o Führer, o Duce, o Mito).
[2] Ao noticiar a morte de Oscar Alberto Martínez Ramírez e sua pequena filha Valeria no rio Grande, o Jornal Nacional, da Rede Globo, em 26 de junho, fez questão de iniciar a matéria chamando os mortos de “imigrantes ilegais”. E o jornal foi encerrado com uma matéria burlesca sobre um nonsense sem graça de uma idosa britânica que queria ser presa. Esta última matéria pretensamente jocosa reflete bem o fomento à falta de inteligência em nossa época e, principalmente, ao exibi-la em meio a gracejos dos apresentadores, a Rede Globo disse ao mundo inteiro que a tragédia humanitária na fronteira americana e seus mortos não têm importância nenhuma. Após, claro que não houve o tradicional silêncio em sinal de luto quando dos créditos. A banalidade do mal em horário nobre.
[3] Em 1984, os ministérios da Oceania também tinham nomes opostos às suas reais finalidades: o Ministério da Verdade era o responsável pela sistematização da mentira; o Ministério da Paz era responsável pela guerra permanente; e, o mais fofo, o Ministério do Amor era encarregado da tortura e assassinato de quem não andasse na linha do Estado totalitário.
[4] “— Foi um livramento. Nos fins de semana, sempre tem alguém ali, ajoelhado junto à lona, rezando. Faz parte da nossa peregrinação. (...)— reclamou o diácono da Assembleia de Deus Shirton Leone (...)— Aos sábados, cerca de 30 pessoas sobem o morro para orar. Algumas passam a noite acampadas ali. Poderia ter sido uma tragédia.”(https://oglobo.globo.com/rio/helicoptero-com-witzel-bordo-metralhou-tenda-de-oracoes-em-angra-dos-reis-23648907). (Acesso em 26/6/2019) Após essa tresloucada diligência, o governador hospedou-se em hotel 5 estrelas em Angra, com diárias fornecidas gratuitamente pelo hotel, apesar de o recebimento de presentes ou qualquer vantagem econômica por agentes públicos ser vedado pelo artigo 9º, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa, enquanto o dar-lhes vantagens indevidas é vedado pelo artigo 5º, I, da Lei Anticorrupção (http://g1.globo.com/globo-news/estudio-i/videos/t/todos-os-videos/v/helicoptero-usado-por-witzel-no-rio-teria-atirado-contra-tenda-de-evangelicos-diz-morador/7597518(Acesso em 27/6/2019).
[5] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia das Letras, 2019, p. 19.
[6] Numa repetição do lema “Ignorância é força”, presente na negação do aquecimento global, na guerra do governo brasileiro às universidades federais, na doutrina terraplanista e no combate à vacinação – v. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/27/ciencia/1551266455_220666.html e https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2019/04/epidemia-de-ignorancia-movimento-contra-vacinas-gera-preocupacao-mundial.html(Acesso em 24/6/2019).
[7] ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Cia das Letras, p. 226.

 é procurador federal, especialista em Direito Previdenciário e Processual Previdenciário pela PUCPR e em Direito Processual Civil pela Faculdade Cesusc.

Revista Consultor Jurídico