OPINIÃO

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A declaração do presidente da República de que pretende nomear para a próxima vaga do STF um ministro cristão (ou “terrivelmente cristão”) tem escandalizado certos autoproclamados defensores do Estado Democrático de Direito. Ora, argumentam tais pessoas, o que a Constituição estabelece como requisitos para a nomeação de ministros do STF são a idade (entre 35 e 65 anos) e “notável saber jurídico e reputação ilibada” (artigo 101); como a filiação religiosa não é uma exigência constitucional, não pode ela, portanto, ser usada como critério seletivo.

O raciocínio que está por trás desse posicionamento é a compreensão, que tem sua matriz no pensamento kantiano, que por sua vez decorre da formação pietista a que se submeteu o filósofo de Konigsberg, de que a religião seria matéria de "foro íntimo", que não poderia produzir qualquer consequência na vida pública. A crença religiosa seria, assim, uma mera questão de preferência, como torcer para um time de futebol: a Bíblia e, digamos, a camisa do Palmeiras seriam equivalentes, pelo menos no sentido de que deveriam ficar em “gavetinhas” que o sujeito abre ou fecha conforme a ocasião, sempre em privado e tendo o cuidado de não incomodar os demais.

Foi preciso um estudioso do nível de Eric Voegelin (1901-1985) para reduzir a pó esta crença: todo o monumental trabalho do filósofo político naturalizado americano (era alemão de nascença) parte de uma premissa teórica e metodológica fundamental: o que cada ser humano faz, do pão à Magna Carta, de uma mesa de madeira à nona sinfonia, é um reflexo direto da sua alma. Não se trata apenas do raciocínio, algo simplista, de que uma alma “saudável” produz obras “saudáveis”, tanto quanto uma alma “doente” produz obras “doentes”, e de que períodos de ordem social são períodos em que predomina a ordem na alma, tanto quanto períodos de caos ou decadência são períodos em que nela (alma) predomina a desordem.

A questão é mais profunda (embora as conclusões acima também estejam presentes aqui): trata-se de um princípio heurístico segundo o qual, quando um estudioso deseja compreender uma sociedade política, a sua primeira tarefa será a de determinar o tipo humano que se expressa na ordem dessa sociedade concreta, pois é ele que vai revelar de que modo se vivencia a verdade da existência como a harmonia com o cosmos. Quem se aproxima desse tipo humano está em consonância (homonoia) com a ordem daquela sociedade.

A partir dessa concepção fica evidente que a religião não é, em absoluto, um aspecto desimportante para a escolha de um ministro do STF. John Adams, nos Federalist Papers, já dizia que a Constituição americana havia sido feita “para um povo moral e religioso”, sendo “completamente inadequada para o governo de qualquer outro”. Isto é verdade para a Constituição americana e também é verdade para a Constituição brasileira. A Constituição de 1988, tão defeituosa quanto seja (este signatário não é dos seus menores críticos), reflete certa visão de mundo, certas opções civilizacionais, certa vivência da ordem (para nos utilizarmos da terminologia voegeliniana), que não podem ser desconsideradas por aqueles que têm a obrigação de garantir o seu cumprimento.

E que visão de mundo seria essa? Que opções civilizacionais marcariam o texto da Constituição de 1988? Que homonoia se espera daqueles que o interpretem?

Em primeiro lugar, é inegável que a atual Constituição faz uma opção pelos valores fundamentais da civilização judaico-cristã: a inviolabilidade do direito à vida (artigo 5º, caput, e artigos 227 e 230), a liberdade do indivíduo, em suas mais variadas manifestações (artigo 5º, caput, incisos VI, IX, XVII, XLI, LIV e LXVIII), a propriedade (artigo 5º, caput, incisos XXII, XXIV a XXVI, XXIX e XXX, artigo 170, inciso II), o direito ao trabalho e à empresa (artigo 1º, IV, artigo 5º, inciso XIII, e artigos 6º, 7º e 170), o princípio da subsidiariedade (artigo 5º e artigos 173 e 174), a liberdade religiosa (artigo 5º, incisos VI, VII e VIII) e, não menos importante, a dignidade humana (artigo 1º, inciso III, artigos 226 e 230). Embora não institua um Estado confessional, a Constituição Federal deixa clara a sua opção deísta ao invocar, no seu preâmbulo, “a proteção de Deus”. A evocação da ordem contida no texto da atual Constituição é a da maioria da população brasileira, e isto é o que garante que, com todos os seus defeitos congênitos e adquiridos, tal documento ainda se mantenha vigente. O tipo de homonoia que ele reflete é a de um povo religioso, que vivencia a experiência da existência em ligação com o Deus da tradição dos cristãos (que a seu turno continuam a dos judeus).

A prova do que se diz? Basta revisitarmos algumas decisões tomadas nos últimos anos pelo STF que, ao se afastarem dessa comunhão valorativa presente na Constituição Federal, provocam desconforto e desorientação no cidadão médio, o qual, mesmo sem ter formação jurídica, sabe que “alguma coisa está errada” na atuação da corte suprema. O primeiro caso que se pode citar é o da Petição 3.388-RR (j. 23/10/2013), em que se decidiu pela homologação da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, o que na prática significou a expulsão de milhares de pessoas das terras em que viviam e trabalhavam, violando a um só tempo a propriedade, a liberdade e o direito ao trabalho. O que se deu ali foi um deslocamento humano de dimensões soviéticas, com traumas semelhantes.

Outra decisão digna de nota é a tomada pelo tribunal na ADPF 54/DF (j. 12/4/2012), que descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos, sendo o atual ministro Luís Roberto Barroso à época o advogado da parte vencedora. Essa decisão, desnecessário encarecer, choca-se com o sentimento da absoluta maioria da população brasileira, cuja posição, contrária ao aborto, é claríssima. Mas o STF não parou por aí: na ADPF 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), que está ainda pendente de julgamento, pleiteia-se a descriminalização do aborto de fetos com até três meses de gestação.

Mais recentemente, o STF, em duas ações (ADO 26 e MI 4.733), julgadas em 13 de junho, decidiu pela criação do crime de homofobia, a ser punido de forma analógica à do crime de racismo (este, sim, tipificado em lei — Lei 7.716/1989). Note-se que já havia, no Congresso Nacional, um projeto de lei que criava o crime de homofobia (PLC 122/2006) e que foi, num processo legislativo legítimo, arquivado. Por mais que se argumente que não criar um tipo penal é uma decisão legislativa tão legítima quanto a de criar, o STF vestiu-se de legislador e criou o crime. Apesar de o artigo 5º, inciso XXXIX, estabelecer que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, este aspecto, segundo entenderam os ministros que votaram pela tipificação penal via sentença, seria algo de menor importância, uma “filigrana” de que poderiam se livrar se lhes desse na veneta (e deu!).

O ministro Luís Roberto Barroso é um dos mais atuantes defensores da atuação recente da corte. Em artigo acadêmico, sustenta que as cortes supremas têm a função de incorporar os “valores civilizatórios”, “interpretar o sentimento social, o espírito do seu tempo e o sentido da história”, promover o “avanço social”, com a “dose certa de prudência e ousadia”, “sem timidez nem arrogância”. Defende o “papel representativo” das cortes supremas, “sua função iluminista” e a sua opinião de que elas “podem, legitimamente, empurrar a história”[1]. A ideia de “empurrar a história” não é exclusiva do ministro Barroso: antes dele, o mesmo desejo acalentava o coração de homens célebres — alguns de não muito boa memória, é verdade. O grande problema é que as gerações de seres humanos que sofrem a ação de tão nobres benfeitores por vezes se comportam de forma ingrata, forçando (ou melhor, empurrando) a história a colocá-los em posição bem inferior à das suas aspirações: o mesmo Robespierre que “empurrou” o pêndulo da história foi por ela engolido quando o pêndulo voltou.

Tudo indica que o próximo passo do STF na direção de “empurrar a história” se dará quando do término do julgamento do RE 635.659, em que se discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Tóxicos (Lei 11.343/2006), para o fim de descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio (o que, na prática, significa a descriminalização também do tráfico). Para Barroso, que naturalmente votou a favor do pedido de descriminalização, “apenas superstição, preconceito ou ignorância poderiam fazer alguém achar que isso [as políticas antidrogas] é eficaz”[2]. O corolário lógico do raciocínio do ministro é o seguinte: quem discorde de sua excelência — ou seja, a maioria absoluta da população brasileira — estará contaminado de “superstição, preconceito ou ignorância” e deverá ser devidamente atropelado pelo carro da história, com Barroso no banco do motorista.

Esta postura de nossa corte suprema não é um indício de que a vivência da ordem (para voltarmos à terminologia de Voegelin) na sociedade brasileira teria mudado: muito pelo contrário, o que denota é que ela não mudou. O brasileiro continua em homonoia com os valores da Constituição de 1988. Melhor dizendo: esta é que continua ainda suficientemente eficaz para cristalizar as evocações de transcendência do cidadão brasileiro, situando-o dentro da ordem do cosmos. O que a atuação do STF demonstra é o abismo que se coloca entre as autoridades encarregadas de proteger a Constituição de 1988 e tudo aquilo que esta representa[3].

Assim, o que deve chocar todos aqueles que observem ou sofram os efeitos das decisões do STF não é a fala de um presidente da República no sentido de que pretende indicar, para vagas futuras, ministros comprometidos com os valores da Constituição de 1988 e do povo brasileiro. Dizer que se vai nomear um ministro “terrivelmente cristão” é só um outro jeito de dizer que se pretende nomear um ministro “terrivelmente comprometido com a ordem constitucional vigente” — qualquer interpretação diferente desta é mistificação. A filiação religiosa, ou pelo menos a identificação do sujeito com certas opções civilizacionais, é um requisito implícito da Constituição de 1988, pois é exatamente isto o que garante que ela será cumprida. A Constituição, como já destacou um juiz da suprema corte norte-americana, não pode ser um pacto de suicídio[4].

O que deveria chocar a comunidade jurídica, e tristemente não choca, são decisões teratológicas, clara e frontalmente violadoras do texto constitucional, e a fala de ministros que se julgam iluminados e confessam que o que estão fazendo mesmo é erodir, pouco a pouco, a ordem constitucional — tudo para empurrar a história. Para onde? Só eles sabem.


[1] BARROSO, Luís Roberto. “A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria.” Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2915571. Acesso em 06.08.2019.
[2] Ver entrevista publicada no portal uol, podendo ser acessada no seguinte link: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/15/em-artigo-barroso-diz-que-legalizacao-das-drogas-e-necessaria-para-derrotar-faccoes.htm.
[3] São inteiramente aplicáveis ao STF as palavras do filósofo Olavo de Carvalho, para quem: “Nunca o abismo entre a elite falante e a realidade da vida popular foi tão profundo, tão vasto, tão intransponível. Tudo o que o povo ama, os bem-pensantes odeiam; tudo o que ele venera, eles desprezam; tudo o que ele respeita, eles reduzem a objeto de chacota, quando não de denúncia indignada, como se estivessem falando de um risco de saúde pública, de uma ameaça iminente à ordem constitucional, de uma epidemia de crimes e horrores jamais vistos.” (O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 244.)
[4] A expressão é do voto do juiz Robert H. Jackson no caso Terminiello v. City of Chicago, 337 U.S. 1 (1949).

 é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, consultor jurídico e parecerista.

Revista Consultor Jurídico