OPINIÃO

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A recém-aprovação do projeto de Lei nº 7596/2017 tem dado muito o que falar, eis que a proposta, discutida e votada em regime de urgência, trouxe para os agentes públicos responsáveis pela investigação, processamento e julgamento de crimes em geral, uma série de dificuldades que, inegavelmente, enfraquecerão todo o sistema jurídico brasileiro.

Sob o pretexto de atualização da Lei de abuso de autoridade, que data de 1965, foram criados dezenas de crimes baseados em valorações subjetivas e com o propósito de intimidar e mitigar a atuação dos agentes públicos que combatem a criminalidade e a corrupção.

Diante de uma inegável crise de legitimidade vivenciada na sociedade brasileira, não há como afirmar que a aprovação do projeto pelos representantes eleitos configura a materialização da vontade do povo. 
Uma publicação feita em uma rede social do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, deixa claro que se trata de uma retaliação aos avanços obtidos pela “Operação Lava Jato”, que colocou na cadeia lideranças políticas até bem pouco tempo inalcançáveis. Em seu Twitter, Maia afirmou que “não iremos nos calar frente aos desmandos de uma operação que visa criminalizar toda a classe política”.

Essa manifestação deixa evidente que a aprovação do PL 7596 se trata de uma vingança daqueles que se sentem “perseguidos” pela Operação Lava Jato e querem transformar o Brasil em um paraíso para criminosos do andar de cima.

Chama a atenção que todas as condutas configuradoras de abuso de autoridade constantes no PL 7596 são aquelas adotadas contra os interesses de quem comete crimes. Ao me debruçar sobre os 45 artigos do referido projeto de lei não encontrei um único ato de “abuso de autoridade” cometido contra a sociedade como, por exemplo, “conceder liberdade provisória quando manifestamente incabível”, “revogar medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais” ou “deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente incabível”.

O projeto mostra, por óbvio, uma preocupação com os supostos “abusos” que possam ser cometidos contra quem comete crimes, porém, não traz uma única linha vinculada à defesa daqueles que são vitimados pelos atos criminosos ou de corrupção.

No afã de tentar calar magistrados, membros do Ministério Público e policiais, os parlamentares criaram dezenas de tipos penais lastreados em condutas inequivocamente subjetivas, com a finalidade de colocar contra a parede aqueles que trabalham em prol da defesa dos interesses da sociedade.

Se algum magistrado, membro do Ministério Público ou policial atua com a “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, que seja devidamente punido. Para atuações dessa natureza já existe o crime de prevaricação, previsto no artigo 319, do Código Penal.

Há um sério problema nessa valoração, uma vez que o criminoso ou o corrupto sempre entendem quem estão sendo perseguidos. O agente público desonesto, para tentar se justificar perante seus eleitores, utiliza uma conhecida técnica de neutralização voltada a tentar atacar quem o acusa. Isso é comum!

O projeto cria tipos penais tão absurdos que fica até difícil tecer comentários, a exemplo da regra trazida no artigo 15, parágrafo único, II, que criminaliza a conduta de quem colhe depoimento “de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono”. Ao que indica a redação, estaria o cidadão impedido de trocar de advogado?

De igual forma é difícil compreender qual é o sentido da conduta criminosa prevista no artigo 16, consistente em “deixar de identificar-se ou identificar-se falsamente ao preso quando de sua captura”.

O tipo penal do artigo 17 criminaliza a conduta de quem submete o preso ao uso de algemas quando “manifestamente não houver ameaça de fuga”. Sinceramente gostaria de saber em que consiste “manifesta ameaça de fuga”.

Ao analisar o crime previsto no artigo 19, consistente em “impedir ou retardar, injustificadamente, o envio de pleito do preso à autoridade judiciária competente para a apreciação da legalidade de sua prisão ou das circunstâncias de sua custódia” fica a dúvida sobre quem seria o sujeito ativo da conduta, uma vez que qualquer pleito do preso à autoridade judiciária é feito por meio de advogado e não é possível que alguém interfira no trabalho dos advogados para “impedir ou retardar” o envio do pleito à Justiça.

Também constitui crime, pasmem, o ato de impedir a entrevista pessoal e reservada do RÉU SOLTO com seu advogado, antes da audiência, por prazo razoável. Trago mais uma indagação: o que é “tempo razoável”?

Conceder a possibilidade de o réu preso entrevistar-se com seu advogado antes das audiência é algo perfeitamente aconselhável eis que, não raro, é somente nesse momento que o réu tem o primeiro contato com seu advogado, De outra sorte, estender essa possibilidade aos réus soltos beira à irresponsabilidade.

Igualmente foi considerado como crime o ato de requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime (artigo 27). Há aqui um problema que todos vivenciamos todos os dias: quem é investigado sempre afirma que não existe indício algum para o início das investigações.

Ninguém, em sã consciência, sai de casa e após tomar o café da manhã pensa: “hoje vou instaurar um procedimento em desfavor de X por mero capricho”. Apenas em mentes ruins surge a ideia de que as ações penais aforadas são fruto de mera perseguição. De outra sorte, caso se comprove que alguma autoridade pública agiu em desacordo com a lei, que seja devidamente punida.

O que não se pode permitir, como tenta fazer o PL 7596/17, é criminalizar, de forma indiscriminada e mediante tipos penais claramente subjetivos, carreiras públicas compostas por homens e mulheres que todos os dias deixam o conforto de seus lares sem a certeza do que encontrarão pela frente.

A criatividade em favor da impunidade é tão grande que se criminalizou a conduta de “exigir informação ou cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal” (artigo 33). Em relação a esse “crime” é importante indagar: qual é o bem jurídico eventualmente violado com a expedição de um ofício ou de uma notificação recomendatória por parte do Ministério Público?

A mera requisição de documentos essenciais às investigações passou a ser considerada como crime. Faltou avisar aos parlamentares que era necessário revogar a norma contida no artigo 10, da Lei nº 7.347/85, a qual considera crime “a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público”.  

A pressa e a urgência em “calar os desmandos de uma operação que visa criminalizar toda a classe política” foi tanta que sequer deu tempo de fazer uma análise técnica do ordenamento jurídico brasileiro.

A respeito desse artigo 33 também chama a atenção a total ausência de técnica legislativa, uma vez que o parágrafo único não guarda nenhuma relação com a norma contida em seu caput.

O artigo 36 cria um tipo penal que pode aniquilar as medidas cautelares de indisponibilidade e sequestro de bens, sobretudo, na seara da improbidade administrativa, uma vez que o próprio STJ já se manifestou em dezenas de processos sobre a legalidade da decretação de restrição patrimonial para a garantia do pagamento de multa civil, além dos valores afetos ao ressarcimento ao erário. Nesse sentido, é impossível ao magistrado no momento da decretação da indisponibilidade já quantificar qual será o valor da multa civil futuramente aplicada.

A sociedade clama pelo combate à impunidade e à corrupção. O Congresso Nacional, na contramão dos anseios que vêm das ruas, entrega para a população um projeto que ao invés de fomentar o combate aos criminosos, enfraquece aqueles que lutam contra o crime.

Se o projeto de 7596/17 for sancionado corremos o sério risco de transformamos o Brasil em um paraíso jurídico para criminosos e corruptos. 

Por fim, em um exercício macabro de futurologia, não estranhem se nos próximos capítulos formos surpreendidos com a revogação (ou flexibilização) da Leis de improbidade administrativa, anticorrupção empresarial, acesso à informação, ou mesmo, com a dilaceração de institutos importantes como a colaboração premiada.

Rodrigo Monteiro da Silva é doutorando em Estado de Derecho y Gobernanza Global (Universidad de Salamanca, Espanha); mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (Faculdade de Direito de Vitória – FDV); especialista em Combate ao Crime Organizado, Corrupção e Terrorismo (Universidad de Salamanca, Espanha); especialista em Direito Público (Universidade Gama Filho); professor em Pós-Graduações diversas; e promotor de Justiça no Espírito Santo.

Revista Consultor Jurídico