Para Tereza Campello, economista e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante os governos da presidente deposta Dilma Rousseff, desde o golpe de 2016 está em curso um processo de desmonte da estrutura de proteção social no Brasil. "A gente olha e acha que não existe um projeto em curso, mas existe, e ele avança rapidamente", afirma

Cris Rodrigues, Brasil de Fato - "É dramática a situação." Assim a ex-ministra Tereza Campello define os primeiros oito meses de governo de Jair Bolsonaro (PSL). Titular da pasta do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante os governos Dilma Rousseff, a economista avalia que está em curso um processo de desmonte da estrutura de proteção social no Brasil.

Para ela, os ataques aos direitos trabalhistas e à aposentadoria efetivados desde o golpe de 2016 deixam a população pobre mais vulnerável. "As pessoas acham que não existe um projeto em curso, mas existe. O problema é que não é um projeto de construção de uma nação soberana", afirma.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a ex-ministra comenta o avanço da fome e da pobreza, que foram negados por Bolsonaro em julho, quando ele disse que "passar fome no Brasil é uma grande mentira". "Você passa 15 anos tentando combater a pobreza e rapidamente, três anos depois do golpe, a pobreza está aí de volta nos patamares de 2006", lamenta.

Para Campello, é justamente nos momentos de crise que o país deveria investir mais nas áreas sociais, como saúde, educação e assistência social, para atender à população mais pobre. Por isso, critica os cortes do governo, especialmente na Educação, e a emenda constitucional que desde 2016 prevê um teto de gastos nessas áreas por 20 anos.

Brasil de Fato: O governo Bolsonaro é a antítese do governo Dilma, do qual você foi ministra. Como você avalia esses primeiros oito meses de governo?

Tereza Campello: Do ponto de vista de quem está preocupado com o país, com construir a nação, é uma tragédia. Eu acho, no entanto, que a gente não pode confundir essa quantidade de despautérios que o presidente fala – por exemplo ofendendo a mulher do presidente francês – com a ideia de que não existe um projeto em curso. É difícil entender, porque quando você fala em projeto geralmente se pensa em um projeto de desenvolvimento. A gente olha e acha que não existe um projeto em curso, mas existe, e ele avança rapidamente.

O problema é que não é um projeto de construção de uma nação soberana, de construção da cidadania, de um país para o seu povo. É um projeto de desconstrução do patrimônio nacional, dos ativos que esse país tem, tanto dos ativos naturais – da riqueza natural, de minérios, do petróleo, da biodiversidade –, como do patrimônio que foi construído às custas do próprio esforço do povo trabalhador. É um projeto de desconstrução do Estado de bem-estar social, que ainda era pequeno.

Então, parece que não é um projeto, mas ele avançou muito, com a desconstrução da legislação trabalhista no Brasil, com o projeto que está em curso de desmonte do sistema de aposentadoria, do SUS, da rede de educação. A situação é dramática.

O presidente chegou a dizer que não existe fome no Brasil, justamente em um momento de desemprego elevado e de aumento da pobreza, que já atinge 21% da população, segundo o Banco Mundial. Já se fala inclusive em volta do Brasil ao Mapa da Fome da ONU. Como você avalia essa postura do presidente diante desse cenário?

Esse governo questiona todos os dados e evidências científicas, tudo que é sólido desmancha no ar. Não tem desmatamento, não tem fome… E usa as redes sociais e o WhatsApp para se contrapor a evidências científicas.

A gente passou 500 anos com a população em situação de fome, era uma marca do país, e isso não acontecia porque o Brasil não tinha comida, acontecia apesar de o Brasil ser um grande produtor de alimentos. Nada justificava a população no Brasil viver desnutrida, ter um alto índice de mortalidade infantil causado por desnutrição, mortalidade materna…

O governo Lula colocou a fome como a sua principal agenda, e isso foi um dos principais elementos que nos permitiram sair do Mapa da Fome, em 2014, segundo a própria ONU. O Brasil tinha alimento, mas o povo não tinha renda para acessá-lo. Como você gera renda e cria essa possibilidade de acesso? Criação de 21 milhões de empregos, construção de uma política de salário mínimo, Bolsa Família, inclusão produtiva, fortalecimento da agricultura familiar, merenda escolar, participação da sociedade civil no Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional].

Tudo isso foi por terra. O combate à fome saiu do nome do Ministério, saiu da agenda, o Consea foi destruído, as políticas de segurança alimentar e nutricional foram eliminadas da agenda e a população pobre saiu do orçamento. E este ano nós vamos ver o aumento de novo da pobreza. Os dados do IBGE mostram que a pobreza no Brasil caiu de 42 milhões de pessoas em 2003 para 14 milhões em 2013. Hoje nós já estamos voltando para um patamar de 22 milhões.

Todos os fatores que levaram o Brasil a sair do Mapa da Fome já foram desconstituídos, então é óbvio que o Brasil está voltando ao Mapa da Fome. Você passa 15 anos tentando combater a pobreza e rapidamente, em três anos depois do golpe, a pobreza está aí de volta nos patamares de 2006. Realmente, é dramática a situação.

Mesmo depois desses anos todos de programas sociais, ainda existe muito preconceito, principalmente com o Bolsa Família. O que você diria para as pessoas que criticam o programa?

Eu acho que, antes de falar sobre o Bolsa Família e sobre as evidências científicas que nós temos mostrado o impacto dele, é importante entender que o que vinha sendo construído no Brasil era uma política complexa, uma ampla rede de proteção social.

Você tinha no Brasil uma rede de proteção baseada em políticas contributivas, uma ampla rede de aposentadoria, seguro desemprego, e você tinha a política de assistência social para o idoso ou à pessoa com deficiência pobre, pelo BPC [Benefício de Prestação Continuada]. Mas as famílias pobres ainda na ativa, com filhos, não tinham cobertura nenhuma. O Bolsa Família vem complementar essa rede.

Agora eles estão acabando com a aposentadoria e com o BPC, e o Bolsa Família não vai segurar isso. Nós vamos ter, nos próximos 10, 20 anos, o impacto do que está sendo essa desorganização da rede de proteção social. Só para ter uma ideia, hoje nós temos em torno de 5 milhões de famílias que não têm nenhuma outra renda, em que os filhos e netos sobrevivem porque o avô ou a avó é aposentado.

Tem muita gente que fala que o Bolsa Família leva as pessoas a pararem de trabalhar. Em média, o benefício é R$ 180 por família; ninguém deixa de trabalhar e ganhar um salário mínimo para ganhar esse valor. Só que ele permite que a família mantenha um padrão alimentar mínimo, que permitiu reduzir em mais de 60% a mortalidade infantil causada por desnutrição e em 48% a mortalidade infantil causada por diarreia.

Hoje a gente tem como comprovar que reduziu hanseníase, tuberculose, mortalidade materna. Nós temos milhares de artigos científicos publicados em revistas internacionais mostrando o impacto de políticas de transferência de renda, o impacto que isso tem na desnutrição. Inclusive eu acho que o Bolsa Família é uma prova importante para a gente se contrapor a esse debate de austeridade fiscal. Cortar a política social, no médio e no longo prazo, é ineficiente. Cortar o Bolsa Família, a aposentadoria e gastos sociais implica em aumento em gastos em saúde.

No caso da educação, vai implicar em perdas para o país, porque reduz produtividade, nós vamos ter uma mão de obra menos qualificada. Esse corte nos gastos sociais que está sendo implantado no Brasil, no médio e no longo prazo, vai ter um custo fiscal altíssimo para o país. Não é eficiente cortar política social.

E educação parece que não é exatamente a prioridade desse governo. Qual é o impacto desse ataque à educação, especialmente ao ensino superior, para o futuro do país e para um projeto de desenvolvimento?

O Brasil fez uma opção ao aceitar a emenda constitucional que estabeleceu um teto nos gastos sociais. Você congela os gastos na educação, na saúde e na assistência social por 20 anos independentemente do que acontecer com o orçamento, do que acontecer no país, e justamente quando a população mais precisa.

É exatamente no momento de crise, em que o desemprego aumenta, que a população mais precisa de suporte na saúde, na educação, na assistência social, e o governo congelou. Qual o impacto disso? É ter um país que se empobrece. O impacto vai ser altíssimo para quem planejava ter um país desenvolvido. O Brasil está voltando, do ponto de vista da sua capacidade produtiva, a ser um país como era na década de 1970: produtor rural, exportador de commodities e importador de produtos industrializados. Estão destruindo a nossa indústria e a capacidade de retomar a indústria, porque não vamos ter trabalhador qualificado. Por isso que eu estava dizendo, isso não é um projeto de país do ponto de vista de quem está pensando em projeto de desenvolvimento. Mas é um projeto para quem está interessado em rapinar o país. O que está acontecendo é uma rapinagem, uma pilhagem, uma pirataria. 

A gente vive um momento extremamente grave de ataque ao meio ambiente. As queimadas na Amazônia viraram notícia mundial e mobilizaram até a cúpula do G-7. Como você vê esse projeto de destruição ambiental e como isso afeta a vida das pessoas?

Por mais que a gente tivesse todo um desafio do ponto de vista ambiental, o sinal que o governo dava era de preservar a diversidade. Agora qual é o sinal que o governo dá? Está autorizado qualquer coisa. É por isso que o desmatamento disparou.

Em oito meses do governo Bolsonaro o desmatamento aumentou 80%, nós estamos voltando ao mesmo patamar de 2003, com um ritmo de desmatamento que, ao que tudo indica, coloca em risco a capacidade da Amazônia de se reconstituir. É muito perigoso, é uma tragédia, e a gente continua vendo uma omissão.

Eu acho importante a comunidade internacional não dizer que a Amazônia não é brasileira, porque a Amazônia é nossa, e a gente não pode confundir o alerta internacional sobre o risco que a gente vive com a ideia de que a Amazônia é um bem internacional e que portanto pode deixar de ser brasileiro. É nossa obrigação como brasileiros questionar o que está acontecendo duramente, reverter esse processo, inclusive para preservar a Amazônia como sendo nossa.

O governo Bolsonaro está totalmente alinhado aos Estados Unidos, mas, na crise ambiental envolvendo a Amazônia, o Trump fez um tweet elogiando o presidente francês, Emmanuel Macron, que estava em uma disputa direta com Bolsonaro. Você agora vive fora do país, na Inglaterra. Como o mundo está enxergando o Brasil nesse momento? Qual é o papel do país nessa disputa?

Eu vivi um período em que, quando a gente viajava, era um orgulho ser brasileiro. Você chegava nos lugares e mostrava o seu passaporte e já se abria aquele sorriso. O Brasil se destacava por ter alterado a postura de combate à pobreza, esse ambiente de se colocar como protagonista no debate das mudanças climáticas. Hoje as pessoas não falam mal do Brasil porque existe um carinho muito grande pelo povo, pela cultura, mas elas falam "nossa, que horror o que está acontecendo”. Todo mundo conhecia o Lula como sendo a pessoa que conseguiu liderar o país no combate à fome, reconheceu a presidenta Dilma como a primeira mulher na Presidência.

Agora é desastroso. Existe um processo de compreensão do que está acontecendo. Hoje as pessoas conseguem entender que o que estava em jogo no Brasil com o golpe que derrubou Dilma era reimplantar um projeto neoliberal e acabar com o protagonismo que o Brasil pretendia como novo player internacional, criando o Brics, se aliando à Rússia, à China, à África do Sul e à Índia. E isso incomodou grandes e poderosos. Eu acho que hoje isso passa a ser compreendido internacionalmente, permitindo inclusive que a gente se reposicione como esquerda dentro do Brasil e consiga explicar para a população o que de fato estava em jogo e o que de fato aconteceu.

Geralmente o começo de um governo é um período que chamam de lua de mel, mas não houve uma melhora nesses primeiros oito meses de governo Bolsonaro e o país continua em crise. Quais são as perspectivas que você vê para a economia do Brasil?

Nenhum dos movimentos feitos por esse governo poderá ter impacto em indicadores econômicos. Para quem achava que a mudança na CLT ia ajudar a retomada da economia, não aconteceu. O que eles estão fazendo é a destruição da rede de proteção social. Todos os sinais são de piora na nossa economia.

Mesmo do ponto de vista do agronegócio, nós estamos destruindo as nossas pontes internacionais, porque a nossa produção vai ser marcada como uma produção que cresce à base do desmatamento e da destruição da biodiversidade, e vai nos levar a perder crescentemente valor econômico.

O desemprego vai continuar aumentando e a perda da renda da população com o aviltamento de salários só vai levar a perder capacidade de mercado interno. Se a população não vai ter como comprar, se aumenta o desemprego e reduz a renda, o que vai mover a economia? Internacionalmente não vai mover e internamente também não.

Eu acho que os sinais são muito graves. E esse é um governo de uma lua de mel marcada pelo ódio. Não teve lua de mel, teve lua de fel. Só é destilado ódio, ódio, ódio, jogando brasileiros contra brasileiros. Isso não vai levar a lugar nenhum, nem do ponto de vista econômico nem do ponto de vista social, infelizmente.

TV 247