Mundo financeiro debate seus dilemas e certamente proporá que os de sempre paguem a conta da crise. Fetiche de Bolsonaro pela Casa Branca represente um sério risco.

Por Osvaldo Bertolino

Ainda sob o eco da explosão social no Equador, o Fundo Monetário Internacional (FMI) inicia sua reunião anual, em conjunto com o Banco Mundial. Na pauta estão questões como os desdobramentos da crise deflagrada em 2007-2008 e os sinais de que uma nova recessão começa a rondar o planeta, constatação confirmadas em declarações dos líderes das duas instituições. O evento reúne banqueiros, diretores financeiros e líderes políticos em Washington, nos Estados Unidos.

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De acordo com Kristalina Georgieva, a nova diretora-geral do FMI, a economia global está desacelerando sincronizadamente. Segundo ela, a situação mudou em comparação com dois anos atrás, quando 75% do mundo acelerava. Em 2019, o FMI projeta uma desaceleração do crescimento em 90% do planeta, o que significa que “o crescimento este ano irá cair para a menor taxa desde o começo da década”.

Seu diagnóstico é de que as causas para essa derrapada são os atritos da guerra comercial e tecnológica que o governo dos Estados Unidos move contra a China. Uma pesquisa do FMI indica que as perdas econômicas com esses atritos somarão US$ 700 bilhões até 2020, o que representa 0,8% do Produto Interno Bruto global. O saldo comercial chinês em setembro, que deve ser divulgado nesta segunda, tende a confirmar sua tese. No mês de agosto, as exportações chinesas caíram e os números de setembro podem ser ainda mais negativos.

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Não há informações sobre qual diagnóstico será feito dos desastres da receita do FMI na Argentina e no Equador. Antes, ela havia mostrado o seu poder destrutivo na Grécia, depois de um ciclo de tragédias sociais na Ásia e na América Latina na década de 1990. Instituições como o FMI e o Banco Mundial funcionam como freios para o desenvolvimento econômico e social de países emergentes. Com uma mão, elas estendem ajuda financeira e, com a outra, exigem a adequação das instituições nacionais à régua dos interesses do capital financeiro.

No Brasil, são famosos os debates sobre o tripé imposto pelo FMI nos anos 1990 — metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário —, uma amarra que nunca foi desfeita. Na época, o conhecido e poderoso “American Entreprise Institute” — um think tank (espécie de laboratório de ideias) com sede em Washington que pesquisa governo, política e economia — integrou uma das reuniões do FMI ao promover uma conferência especial com o tema ''O FMI realmente tem condições de salvar o mundo?''

Ícones de Wall Street

A intenção seria a busca de uma nova ordem econômica mundial baseada no capitalismo norte-americano. O mundo vivia a ascensão das chamadas economias emergentes e a onipotência dos Estados Unidos começava a ser ameaçada. O próprio FMI constatou esse deslocamento da dinâmica da economia mundial. O então diretor-gerente do Fundo, Dominique Strauss-Kahn, disse que a China desempenharia um maior papel na economia global.

O incômodo do Ocidente e a responsabilidade atribuída por Kahn à China decorreria do choque causado pelo relatório do FMI, intitulado “Global Financial Stability”, com advertências sobre rombos gigantescos dos bancos e previsões de profunda contração da economia mundial, pela primeira vez desde 1945. As perdas do sistema bancário internacional se aproximavam do astronômico total de US$ 4,1 trilhões, dos quais US$ 2,7 trilhões referiam-se aos prejuízos do sistema financeiro norte-americano e US$ 1,19 trilhão ao dos bancos da Europa Ocidental.

Era óbvio que com esse diagnóstico a economia mundial estava entrando numa grande crise, que explodiu com a quebra de ícones de Wall Street como o Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento do mundo. O FMI havia pedido aos governos dos países ricos que tomassem medidas, sobretudo a redução da taxa de juros. A verdade é que a instituição nada podia fazer além desse apelo. Os 20 poderosos do planeta — o G20 — chegaram a cogitar uma injeção de US$ 1,1 trilhão no FMI como medida emergencial.

Como disse o famoso economista Nouriel Roubini, seria uma ''reanimação de gata morta'', advertindo sobre a eclosão de novos perigos nos bancos norte-americanos. Já o Nobel Paul Krugman disse que a crise financeira relacionada à dívida externa do México em 1995 e a crise da Ásia em 1997-1998 eram apenas os dois primeiros atos de uma peça em três atos. ''O desastre que afundou o peso argentino em 2001-2002 representou claramente o princípio do terceiro ato — mas ainda não sabemos como se desenrolará o resto da peça'', disse ele.

Injustiças globais

O Brasil era um dos países tutelados pelo FMI — amarra da qual se livrou no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com o fetiche do governo Bolsonaro pela Casa Branca, é importante observar como os magnatas das finanças vão tratar a volta daquela ordem na economia capitalista. Desde a Conferência de Bretton Woods, realizada em 1944, os Estados Unidos têm a rédea da economia do Ocidente.

O FMI e o Banco Mundial, instituições surgidas na ocasião, sempre foram guiados por regras que privilegiam os interesses norte-americanos. Eles ainda são o instrumento para costurar as economias sob a hegemonia dos países centrais. De outra forma, economias importantes poderiam ter seguido por outro rumo — a exemplo do que fizeram Deng Xiaoping e seus camaradas na China. Mais recentemente surgiu o G77, com papel protagonista do Brasil, que entrou em cena de forma marcante nas mãos.

O grupo reuniu a bancada dos países em desenvolvimento nos encontros econômicos internacionais. As injustiças globais já eram gigantes, o que motivou manifestações como as que empastelaram a Conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, nos Estados Unidos, em 2000. Aquele evento foi como que um divisor de águas em encontros dos magnatas da economia mundial.

A OMC assumira o comando das negociações comerciais e tentou fazer valer os interesses predominantes em seu interior. Ela foi criada em 1995 para substituir o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, o Gatt, um contrato firmado entre vários países em 1948, com o intuito de estabelecer diretrizes para o comércio exterior. O Gatt tratava apenas de bens industriais, e suas primeiras rodadas de negociações abordavam basicamente redução de tarifas de importação.

Com o tempo, as discussões englobaram também aspectos como políticas antidumping e barreiras não-tarifárias às importações. O último capítulo do Gatt foi escrito na Rodada do Uruguai, que se estendeu entre 1986 e 1994 e que, entre outras coisas, definiu a criação da OMC.

Rodada do Milênio


A OMC é uma irmã tardia do FMI e do Banco Mundial, instituições surgidas na Conferência de Bretton Woods, um pouco antes da criação do Gatt. Havia já naquela época a ideia de criar uma organização internacional para cuidar do comércio entre os países capitalistas — da mesma forma que o Banco Mundial tinha a missão de cuidar do "desenvolvimento econômico" e da reconstrução no pós-Guerra, e o FMI de cuidar da "estabilidade monetária".

A ideia, no entanto, foi rejeitada pelo Senado norte-americano. Os Estados Unidos já propagavam o conceito de que o mundo precisa mais deles do que eles do mundo. Com a negativa do Senado, a saída foi efetivar um contrato internacional que estabelecesse minimamente os parâmetros para as transações comerciais entre os países — o Gatt. A OMC, portanto, só veio à luz quase 50 anos depois de ter sido aventada pela primeira vez.

Em 1995, os norte-americanos apostavam que uma homogeneidade liderada pela tríade Estados Unidos–União Europeia–Japão eliminaria os antagonismos intransponíveis do mundo de outrora, do tempo da Guerra Fria, e permitiria o funcionamento, sem maiores riscos, da estrutura horizontal da OMC.

O assunto empacou na chamada Rodada do Milênio. Como se viu em Seattle, depois em Gênova (Itália), Cancun (México) e em outras partes do mundo, com explosivas manifestações de rua — para fugir dos protestos, o assunto foi levado para a isolada cidade de Doha, no Catar —, o debate sobre o tema é bem mais difícil do que eles supunham.

A OMC não tem poder decisório — ao contrário do FMI e do Banco Mundial. As decisões são sempre tomadas por consenso entre os 135 membros, que representam 90% do comércio internacional. Decisões por voto, com necessidade de uma maioria de três quartos, estão previstas no regimento interno, mas jamais aconteceram. Cada país membro tem um voto, e os votos têm pesos iguais.

Força dos fracos

Um dos principais impasses no comércio mundial está relacionado à pressão dos países capitalistas ricos sobre a política cambial da China. Ou seja: há uma pressão para que o governo chinês adote algo parecido com o tripé do FMI, como tem dito, de forma obliqua, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Não é de agora que a China reage com contundência a essa pressão pela conversibilidade da moeda local, o yuan, e sua valorização frente ao dólar.

Os chineses tratam o sistema de troca de moedas como assunto interno. “Nenhum país ou organismo internacional têm o direito de interferir em nossa política monetária", afirmou um representante do governo chinês, segundo o jornal China Daily. Um dirigente do Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD) — algo como o brasileiro Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — para a região da Ásia também desaconselhou a China a liberalizar sua moeda, diante da ameaça de "especulação monetária muito presente desde a crise asiática de 1997".

O Brasil está diante de uma encruzilhada. Para pegar o caminho do desenvolvimento com progresso social, o desafio é o rompimento com essas relações econômicas impositivas, que se originam de interesses oligárquicos e financeiros. Essa intricada rede só pode ser enfrentada com a soma de forças que vão além das questões internas — a exemplo do que fizeram sobretudo os países do BRICS no G77. Nesse caso, soam bem as palavras de Karl Marx: "As transformações sociais nunca se realizam graças à fraqueza dos fortes, mas sempre graças à força dos fracos."
Vermelho