Relator do caso e todos os ministros que votaram até agora concordam que pessoas negras têm direito à reserva 


por Renan Barbosa, com colaboração de Mariana Balan



O Supremo Tribunal Federal (STF) se encaminha para reconhecer a constitucionalidade da Lei 12.990/2014, que regula as cotas para negros no serviço público. O julgamento foi iniciado na última quinta-feira (11) e suspenso, para ser retomado posteriormente, porque o relator, ministro Luís Roberto Barroso, precisou se retirar da sessão. A Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 foi ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com o objetivo de sanar a controvérsia jurídica que existe em outras instâncias da Justiça sobre a validade constitucional da legislação.


O texto reserva aos negros 20% das vagas ofertadas em concursos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Relator da ADC, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que os argumentos utilizados por quem acredita que a lei é inconstitucional surgem de uma suposta violação aos princípios da igualdade, da eficiência e da proporcionalidade. 


Segundo o ministro, questiona-se que o ingresso no serviço público seria diferente do ingresso no ensino superior, vez que a educação é um direito fundamental, diferentemente do acesso a cargo público, o que justificaria a política de cotas na primeira situação e não justificaria na segunda. Também há quem alegue que negros e pardos seriam privilegiados duplamente, com o ingresso na universidade e no serviço público por meio de cotas – se têm acesso à universidade, poderiam disputar os cargos públicos de forma igual aos demais. Barroso, porém, não acredita que os argumentos sejam válidos.


Igualdade 

Na sessão no STF, o jurista disse que é permitido ao legislador estabelecer diferenciação entre as pessoas, desde que o fim visado seja razoável e compatível com o que traz a Constituição Federal (CF). Para justificar sua visão, o ministro citou a dívida histórica que se tem com os negros, que após o fim da escravidão não puderam contar com nenhum tipo de planejamento para ser integrados à sociedade. O juiz também falou sobre o racismo estrutural que acontece no Brasil. 


“Aqui, diferentemente do que se passou nos Estados Unidos [com a segregação racial que perdurou até meados do século XX], não foram necessárias leis discriminatórias, do estilo vagões e banheiros só para negros ou só para brancos. Aqui, o racismo era tão estruturalmente arraigado que isso já acontecia naturalmente”, apontou. Para Barroso, os brasileiros se acostumaram com uma sociedade estratificada, em que os negros ocupavam cargos que podem ser considerados inferiores, como porteiros e empregadas domésticas. 


No mesmo sentido, Fux disse que “dizer que não existe racismo no Brasil é mentira” e Rosa Weber afirmou que “reduzir a desigualdade social é previsão constitucional”. 


Sobre a presença de negros nas universidades e em altos cargos, Barroso disse que “o que em um primeiro momento parecia impossível e depois improvável, hoje parece natural” e que “se tudo der certo, daqui a 50 anos não haverá mais esse problema [da discriminação e da desigualdade]”.


Concurso público, eficiência e proporcionalidade 

A respeito do argumento da violação ao concurso público, o relator disse não fazer “nenhum sentido”. Isso porque os negros, assim como o restante dos concorrentes, precisam ser aprovados para assumir o cargo. “Se não atingirem um patamar mínimo, não vão passar”, observou. 


No tocante à eficiência, Barroso disse acreditar que não é porque um candidato foi aprovado em primeiro lugar por um critério “a” que ele vá, obrigatoriamente, ser melhor que os outros. O ministro disse que se trata de uma visão linear da meritocracia, que deve comportar nuances. Citou, como exemplo, que a experiência pessoal do candidato, de sua vivência, também é valiosa para o concurso público, e não somente o conhecimento técnico. 


“A eficiência pode muito bem ser servida pelo pluralismo e pela diversidade no serviço público”, afirmou. 


Por último, o ministro rebateu aqueles que dizem que o princípio da proporcionalidade seria desrespeitado com as cotas em concurso, pois a demanda por reparação histórica já seria suprida pela ação afirmativa das universidades. Barroso falou que não são, necessariamente, as mesmas pessoas que entraram na faculdade que vão prestar concurso, vez que há muitas provas para cargos técnicos, que não exigem nível superior.


Autodeclaração 

Outro ponto analisado no julgamento da ADC foi a autodeclaração de que se é negro ou pardo, no momento da inscrição no concurso. Há quem alegue que o ato estaria sujeito a fraudes. 


Barroso afirmou que a questão é bastante complexa, mas que é preciso respeitar como as pessoas se auto percebem. “Pode ser que eu não perceba uma pessoa como negra, mas que ela se enxergue como tal”. Entretanto, entendeu que são válidas comprovações da cor de pele que vão além da autodeclaração, desde que garantida a dignidade do indivíduo, bem como o direito ao contraditório e à ampla defesa.


Votos até o momento 

Todos os ministros que votaram até o momento acompanharam o relator: Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber e Luiz Fux. Faltam ainda Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello. Durante sua fala, o ministro Alexandre de Moraes chegou a ser interrompido por Gilmar Mendes, que disse se preocupar com a abrangência da lei em relação aos três Poderes e afirmou acreditar que, muitas vezes, o uso de cotas pode promover o racismo. 


Apesar do comentário de Mendes, pelo clima da sessão de quinta-feira, a expectativa é de que a tese de Barroso vingue. O ministro Lewandowski foi bastante citado pelos colegas que se pronunciaram até então, por ter sido o relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, de 2012, em que o Partido Democratas (DEM) se posicionava contra a política de cotas étnico-raciais no vestibular da Universidade de Brasília (UnB). O pedido foi julgado totalmente improcedente pelo magistrado.


Análise

A pesquisadora do Supremo em Pauta da FGV-SP, Lívia Guimarães, chama a atenção para duas questões durante o julgamento: a discussão sobre a abrangência da lei e o seu escopo de aplicação. “A princípio, parece que os ministros tendem mesmo a expandir a compreensão de que, se os direitos fundamentais são válidos em uma esfera do poder, eles são válidos para todas”, afirma Lívia. Até o momento, o plenário do Supremo se direciona para garantir a aplicação da lei no âmbito de todos os poderes, e não apenas do Executivo, e entre todos os entes federativos: União, estados e municípios.


“Em relação ao segundo ponto, pode haver uma divergência interna. O ministro Alexandre de Moraes entende que a lei só pode valer para o o momento de ingresso na carreira, enquanto os outros ministros entendem que vai valer para todo o percurso na carreira”, explica Lívia.


Para Dircêo Torrecilhas Ramos, advogado e professor de Direito Constitucional, o sistema atual de cotas fere a meritocracia. “Eu sou contra o sistema de cotas do jeito que está sendo feito. Sou a favor da meritocracia. Entendo que existem pessoas em condições inferiores, mas não apenas em relação a gênero e raças. E não é através de cotas que se deve responder. No sentido geral, isso deve ser resolvido por oferta de condições às pessoas, e não só com base em gênero e raça”, ressalta.


Torrecilhas vê com acerto a decisão de que a lei, se passar pelo crivo do STF, deve valer para todos os poderes e entes federados, já que os direitos fundamentais são indivisíveis, mas ressalva que a norma deveria valer apenas para o momento de ingresso na carreira.  “A pessoa já está na carreira, já tem um bom emprego, uma situação boa de vida, para que precisaria de vantagens para ascender na carreira?”, questiona.




Fonte: Gazeta do Povo, 15 de maio de 2017.