Trump e os republicanos são lembrados que, anos atrás, criticaram duramente as medidas de socorro do governo Barack Obama a bancos e fábricas depois da quebra financeira de 2008

Discurso republicano esbarra, mais uma vez, nas ideias de Keynes

Quando chegou à Casa Branca, Donald Trump prometeu se tornar o maior desregulador da história dos Estados Unidos, acima inclusive de Ronald Reagan. Em pouco mais de três anos, conseguiu levar adiante o mais vultoso corte tributário desde o célebre presidente republicano da década de 1980, que tomou posse no cargo com uma frase para recordar: “O governo não soluciona problemas – o governo é o problema”.

A menos de um ano de tentar a reeleição, Trump acaba de se ver exposto a impulsionar um bilionário plano de resgate econômico para empresas e cidadãos e até a ativar a Lei de Produção de Defesa, que data da Guerra da Coreia (1950-53) e permite ao governo intervir nas indústrias para garantir a fabricação de materiais necessários à nação. A colossal crise desatada pelo coronavírus mudou agendas, planos e doutrinas nos governos de meio mundo.

Nos Estados Unidos, porém, Trump e os republicanos estão sendo recordados nos últimos dias que, anos atrás, criticaram duramente as medidas de socorro do governo Barack Obama a bancos e fábricas depois da quebra financeira de 2008. Em 2012, o nova-iorquino acusou o seu antecessor, democrata, de estar “arruinando a indústria norte-americana” com o resgate ao setor automobilístico, que, denunciava o magnata, retribuía gerando empregos na China, e não nos EUA.

O maior senão à recriminação de Trump é que não foi Obama quem impulsionou o resgate dos gigantes automobilísticos norte-americanos – General Motors e Chrysler –, mas, sim, o antecessor dele, George W. Bush, republicano. Em 19 de dezembro de 2008, Bush anunciou que emprestaria US$ 17,4 bilhões a essas empresas. “Se deixarmos que o livre mercado siga seu curso, levará com segurança a uma bancarrota desordenada”, justificou-se.

Uma semana antes, os senadores do seu próprio partido tinham derrubado no Senado um projeto de lei semelhante, alegando que não estabelecia suficientes cortes de salários como contrapartida. Bush pôde agir por sua conta porque desviou parte dos recursos que o Congresso tinha aprovado previamente para o resgate bancário (o programa TARP, na sigla em inglês). Porque, sim, também o resgate dos bancos começou no crepúsculo da era George W. Bush.

Quatro anos depois, fora da Casa Branca, com debates inflamados sobre os resgates em ambos os polos ideológicos nos EUA (o movimento indignado Ocuppy Wall Street, por um lado, e o conservador Tea Party, pelo outro), o ex-presidente assim se justificou em uma conferência: “Não quis arriscar. Não queria que a história olhasse atrás e dissesse: ‘Bush pôde fazer algo e optou por não fazer’”.

Nenhum presidente quer entrar para a história desse jeito. Foi o caso de Bush, que lançou as bases do gigantesco resgate após a Grande Recessão de 2008; foi também o de Obama, que o seguiu; e o mesmo valeria para Richard Nixon, que após os programas Great Society, do democrata Lyndon B. Johnson, ampliou os benefícios da Previdência Social e introduziu um imposto mínimo sobre rendas elevadas, e para Dwight Eisenhower, que abraçou os planos do New Deal legados por Franklin Roosevelt.

Na Meca do liberalismo econômico, sempre houve catástrofes de um ou outro caráter para recordar aos presidentes, por mais conservadores que fossem, que não há nada mais ortodoxo do que ser heterodoxo quando os desafios assim exigem. “Agora sou keynesiano em política econômica”, disse Nixon em 1971. Ao final, sempre emerge a figura de John Maynard Keynes e suas ideias. Para Keynes, os mercados, sozinhos, não se corrigem ante uma crise severa – nem sequer a política monetária bastava. Para reativar um país, era preciso o braço fiscal do governo, o gasto público e os estímulos.

A história pôs Donald Trump perante uma crise de envergadura imprevisível, em que uma pandemia feroz obriga a paralisar a vida de meio mundo. Não é possível calcular sua duração, mas já se observa que foi mais abrupta que a de 2008. Uma recessão global é dada como certa. Washington adverte que a taxa de desemprego pode alcançar 20% – uma aberração num país com pouca rede social, habituado quase ao pleno emprego. A fim de conter os contágios, o presidente promove injeções de dinheiro público para conter os estragos de um congelamento autoimposto na atividade econômica.

Estímulos por terra, mar e ar

Republicanos e democratas estão há vários dias negociando no Congresso as medidas definitivas do plano, que se move em torno de US$ 1,8 trilhão (cerca de R$ 9 trilhões, ou pouco mais de um quarto do PIB brasileiro) e chegará por terra, mar e ar. Trump antecipou na semana passada que pretendia destinar US$ 500 bilhões a enviar cheques diretamente aos cidadãos (podem alcançar até US$ 3 mil dólares por família). Mas também regaria de empréstimos as companhias aéreas (US$ 50 bilhões) e outros setores afetados, como os hotéis (US$ 150 bilhões).

Adia-se, além disso, a declaração de impostos durante 90 dias, o que se traduz em uma liquidez disponível de R$ 300 bilhões. Também estão sendo discutidos subsídios de desemprego e ajudas para licenças médicas, assim como a autorização para que o Federal Reserve (banco central) empreste outros US$ 4 trilhões.

Com os planos já sobre a mesa e a artilharia dos bancos centrais preparada, os programas públicos acabarão ficando à altura dos ativados após a 2ª Guerra Mundial. “Sou um presidente em tempos de guerra”, disse Trump na sexta-feira. “Eles não têm culpa”, acrescentou, em referência aos trabalhadores e empresários prejudicados. É o pano de fundo ético do assunto: parte do desastre da crise financeira de 2008 podia ser atribuída aos excessos do capitalismo. Agora é um vírus, em sentido literal, o que pôs o mundo em tormenta.

São momentos excepcionais em Washington e em metade do planeta. Os planos dos governos nem sequer procuram reativar a economia agora mesmo, apenas conter o dano de paralisá-la e deixar a população dentro de casa enquanto se combate a enfermidade. Mesmo assim, o incômodo atávico de alguns membros do governo Trump com a mão mais que visível da Casa Branca era evidente nesta semana. “Isto não é um resgate. Estamos considerando proporcionar certas coisas a certas empresas”, justificou o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin.

Milton Friedman, apóstolo do livre mercado, disse numa entrevista de 1965 que, “em certo sentido, somos todos keynesianos agora. Em outro sentido, ninguém mais é”. Referia-se a que a terminologia havia se universalizado, mas não sua essência. Mnuchin e muita gente no Capitólio pensam o contrário.

Invasão alienígena

Os Estados Unidos já somam 417 mortos e mais de 35 mil afetados pela Covid-19, segundo os dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde. Mas, com a progressão observada em outros países, como a Espanha e a Itália, os especialistas e o Executivo se preparam para uma multiplicação horripilante dessas cifras.

Na semana passada, na rede pública PBS, perguntaram a Kenneth Rogoff, economista-chefe do FMI e professor de Harvard, com o que se podia comparar o que está ocorrendo. O mais parecido era “uma invasão alienígena”, respondeu ele. “Não se pode comparar nem sequer com a gripe espanhola de 1918, porque aquilo foi depois da 1ª Guerra Mundial e as coisas já estavam ruins. Aqui os aliens estão nos invadindo, dizem-nos que nos metamos em casa e não saiamos, e em curto prazo vamos experimentar uma recessão tão brusca como só se viu na 2ª Guerra Mundial”, disse.

Com todas as medidas de restrição ou confinamento ativadas na Califórnia, Nova York, Illinois, Connecticut e Nova Jersey, um em cada quatro norte-americanos está obrigado a permanecer em casa. O estado de Nova York, epicentro do vírus no país, com quase metade dos afetados, se prepara para uma situação extraordinária de “quatro, cinco, até nove meses”, nas palavras do governador Andrew Cuomo. Fontes federais alertam para a falta de máscaras e respiradores a serem usados para tratar a esperada onda de contagiados.

Com informações do El País