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Recentemente, circulou, em diversas mídias, vídeo em que uma pessoa, longe do seu ambiente de trabalho e fora do seu horário de labor, ofendia/desrespeitava um agente público: não demorou a circular a notícia de que fora a mesma despedida pelo seu empregador, não tendo as reportagens esclarecido se a dispensa fora motivada ou não.

Sabemos que, no ordenamento pátrio, a despedida do empregado encerra um direito potestativo do empregador, de sorte que, como regra, especialmente quando o trabalhador não é detentor de estabilidade ou garantia de emprego, não há necessidade de o contratante justificar a sua ação. O objetivo deste trabalho é enfrentar uma outra e importante questão: o ato praticado pelo empregado fora do horário de trabalho e distante do estabelecimento patronal pode dar ensejo à despedida por justa causa?

Inicialmente, mister recordar que o Código Civil preconiza a função social do contrato, mesmo porque é evidente que o pacto repercute na comunidade como um todo, de sorte que não deve nem pode ser o mesmo analisado em abstração dos valores sociais. Lapidar a lição de Pablo Stolze, verbis"A função social do contrato é, antes de tudo, um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe conhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum” (in Novo Curso de Direito Civil, 2005, p. 55).

Logo se percebe que a função social do contrato pode ser descortinada em dois aspectos, igualmente relevantes, a saber, a vontade individual dos contratantes para satisfação de seus anseios e o interesse da sociedade no sentido de que aquela relação ajustada se desenvolva com observância dos ditames de boa conduta e ética. Elucidativo, nesse passo, o artigo 421 do Código Civil: "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

Transportando essas ideias iniciais para o contrato de trabalho, verificamos que as obrigações livremente acordadas por empregado e empregador irradiam seus efeitos para além do seu estrito conteúdo personalíssimo, sendo inexorável o exame da sua operacionalização também à luz dos desígnios sociais. Negar tal fato importaria em não reconhecer a função social do contrato de emprego, algo que, data venia, de tão absurdo, não merece comentários.

O que se afirma ganha pujança avassaladora em tempos hodiernos, em que é defendida uma integração cada vez maior do empregado no empreendimento (onboarding): ora, se esta é a realidade ideal, não se pode fugir à sentença de que aos direitos hão de, necessariamente, corresponder obrigações.

Nesse sentido, entendemos não mais ser possível se apegar ao antigo paradigma de que as obrigações contratuais laborais se exaurem no ambiente e no horário de trabalho, sendo indispensável, para perfeita compreensão do pacto e de sua extensão, atentar para o seu conteúdo indisfarçadamente social.

Por outro lado, para evitar-se conclusão equivocada (rectius: alegação desprovida de amparo), de bom alvitre registrar que não se defende a ideia de que o empregado, fora do horário de trabalho, não possa desfrutar do relaxamento e das alegrias da vida, especialmente em razão do quanto expressamente posto ao artigo 6º da Carta Magna, que erige o lazer à qualidade de direito social.

Dessa forma, sequer perfunctoriamente, aqui se nega o direito do empregado à desconexão, mesmo porque estudos científicos evidenciam que impedir que o empregado se desconecte do trabalho nos seus períodos de pausa ou descanso enseja profundos gravames à saúde obreira, não sendo sequer razoável imaginar que o empregado esteja juridicamente subordinado ao empregador durante as 24 horas do dia...

Porém, condensando todas as ideias até aqui postas, parece-nos evidente que, se a liberdade do empregado em seus momentos de lazer é primado forte, não menos robusta é a ideia de que a função social do contrato e as consequências das práticas obreiras na imagem do empreendimento devem ser cuidadosamente observadas pelo trabalhador não apenas no ambiente de trabalho.

Contam-se já à mancheia casos de empregados despedidos motivadamente em razão de publicações em redes sociais que atentam contra a mínima ética que deve nortear a atuação de todos no convívio social.

Mas não podemos perder o foco deste artigo, que versa sobre a possibilidade de dispensa motivada de um empregado, flagrado, distante do estabelecimento em que trabalha e fora do expediente, em atuação que não se revela condizente com regramento moral. Por tudo o quanto retro posto, não hesitamos em afirmar que sim, especialmente se o empregador possuir regulamento interno que reze sobre conduta de seus trabalhadores, obviamente dentro dos limites legais.

Ganha relevo pujante, na espécie, a ideia de compliance, tão em voga na modernidade e que, síntese apertada, pode ser compreendida na observância de regras de conduta e no cumprimento de ditames éticos, inclusive para obstar desvios de ação que ensejem prejuízo material ou imaterial ao empreendimento.

Dessarte, e visualizada a relação de trabalho com novíssimo olhar (sim, a releitura do vínculo de trabalho há de se operar tanto em relação aos direitos quanto em relação aos deveres de ambos os contratantes!), é forçoso reconhecer que os ajustes de conduta firmados nos limites da lei hão de ser observados.

Assim, o empregado não pode se descuidar da ideia de que atitudes equivocadas tomadas fora do ambiente de trabalho podem vir a refletir na sua relação de trabalho, seja trazendo gravame para o empregador, seja impossibilitando o regular convívio com seus colegas.

Entretanto, mister frisar com cores fortes: não é qualquer desvio de conduta, por mais deplorável que seja, que dará ensejo a uma justa causa. Uma conjunção de fatores faz-se necessária para que a dispensa motivada se concretize: 1) o ato praticado pelo empregado deve ser grave; 2) a atitude do trabalhador deve violar o regulamento interno relativo a código de conduta; 3) aquela ação deve macular a imagem do empreendimento; e 4) o feito deve quebrar a fidúcia que é inerente ao vinculo de emprego.

Dessarte, como salientado alhures, e afastada a primitiva ideia de que a relação de trabalho somente pode ser apreciada e entendida nos estreitos contornos do local e do horário de trabalho, afirmamos que, observada a conjunção citada ao parágrafo pretérito, não há razão para se negar o reconhecimento da justa causa obreira.

Claro que o tema é polêmico e suscita debates profundos, mas não poderíamos ficar à margem de questão tão instigante. É certo que não seria possível, em poucas linhas, esgotar a matéria, de sorte que nos satisfazemos em apresentar, ainda que de forma resumida, a nossa compreensão do fato. Como sempre sustentamos, refletir é urgente, debater é necessário... 

 é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Salvador e professor de Direito Processual do Trabalho.

Revista Consultor Jurídico