Pedro Mahin Araujo Trindade

Como toda norma jurídica produzida pelo Estado brasileiro, a conformidade das medidas provisórias ao texto da Constituição de 1988 é requisito essencial de sua validade.  

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No último dia 17 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou a medida provisória 927/20, que dispõe sobre medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública decorrentes da pandemia do covid-19. O texto aprovado inclui emenda proposta pela deputada Soraya Santos (PL/RJ), que prevê a possibilidade de suspensão do cumprimento de acordos trabalhistas e de planos de demissão voluntária por empresas atingidas por determinação do poder público de paralisação total ou parcial de suas atividades. Essa suspensão vigerá durante o período de calamidade pública, que se estenderá, pelo menos, até 31 de dezembro de 2020 (decreto legislativo 6/20, do Congresso Nacional).

O objetivo da emenda é reduzir o impacto da paralisação das atividades das empresas sobre sua saúde financeira. Embora essa deva ser uma preocupação do poder público, inclusive como forma de viabilizar a retomada da atividade econômica e do emprego após a fase mais aguda da pandemia, os ônus de tal medida não podem recair sobre os trabalhadores. Esses não são responsáveis pelos riscos inerentes aos negócios empresariais. Ao contrário, são a parte mais vulnerável da relação de trabalho, o que se torna mais evidente num cenário de calamidade pública, como o imposto pela pandemia do covid-19.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre abril e maio, cerca de 7,8 milhões de postos de trabalho foram fechados no Brasil, elevando a taxa de desemprego no país para 12,9% da população economicamente ativa. Aproximadamente, 75% dos postos de trabalho fechados referem-se ao setor informal da economia, que vinha absorvendo o contingente de trabalhadores que perdiam seus empregos com carteira assinada. Isso significa que os trabalhadores estão perdendo o seu emprego e não estão obtendo nova colocação, nem mesmo no setor informal.

Entretanto, o trabalho é a principal fonte de renda das famílias brasileiras. É a remuneração proveniente do trabalho que assegura o acesso da população a direitos sociais fundamentais, previstos na Constituição de 1988, como saúde, educação, alimentação, moradia e transporte. Com o avanço da taxa de desemprego, a despeito do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, o gozo desses direitos e a subsistência das famílias encontram-se sob grave ameaça. Nesse contexto, a renda oriunda de acordos trabalhistas e de planos de demissão voluntária serviria de um amparo mínimo aos trabalhadores atingidos pelo desemprego. A postergação do pagamento desses valores para, no mínimo, o ano de 2021, como previsto na emenda proposta pela deputada Soraya Santos (PL/RJ) à medida provisória 927, coloca-os em situação de extrema vulnerabilidade social e econômica, sobretudo no contexto da pandemia do covid-19.

A ordem econômica brasileira, tal como desenhada pela Constituição Federal, é fundada não apenas na livre iniciativa privada, mas também na valorização do trabalho e na função social da propriedade. Adicionalmente, a ordem econômica nacional tem como objetivo principal assegurar uma vida digna a todos. Isso significa que a sobrevivência das empresas ao custo da subsistência dos trabalhadores contraria os propósitos da ordem econômica brasileira. Assim, não há conciliação possível entre a suspensão do cumprimento de acordos trabalhistas e de planos de demissão voluntária e uma ordem econômica justa e solidária, como a prevista na Constituição de 1988.

Enfim, o acordo trabalhista constitui um ato jurídico perfeito e, uma vez homologado pela Justiça do Trabalho, equivale a uma sentença judicial irrecorrível. Da mesma forma, após a adesão dos trabalhadores às cláusulas do plano de demissão voluntária, estas integrarão seu patrimônio jurídico, convertendo-se em direito adquirido. Assim, ao autorizar a suspensão do cumprimento de acordos trabalhistas e de planos de demissão voluntária, a emenda da deputada Soraya Santos (PL/RJ) vai de encontro ao direito fundamental dos trabalhadores à preservação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada.

Como toda norma jurídica produzida pelo Estado brasileiro, a conformidade das medidas provisórias ao texto da Constituição de 1988 é requisito essencial de sua validade. A MP 927/20, na parte em que prevê a possibilidade de suspensão do cumprimento de acordos trabalhistas e de planos de demissão voluntária, viola, simultaneamente, o direitos dos trabalhadores a uma vida digna, ao gozo dos direitos sociais fundamentais e à preservação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, bem como viola os princípios da ordem econômica brasileira. Nesse sentido, é inafastável a conclusão pela invalidade dessa norma, por inconstitucional.

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t*Pedro Mahin Araujo Trindade é advogado especialista em Direito do Trabalho e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados.