O ataque de Donald Trump à decência criou uma coalizão emergente, que vai além dos limites de raça, classe e política partidária.

por Robert ReichTradução: José Carlos Ruy

Biden tende a receber apoio de ex-eleitores de Trump

Donald Trump está prestes a realizar o que nenhum presidente dos EUA jamais conseguiu – uma coalizão política bipartidária verdadeiramente multirracial, multi-classe e tão abrangente que pode realinhar a política dos EUA nos próximos anos.

Infelizmente para Trump, essa coalizão surgiu para impedi-lo de ter outro mandato.

Começo com a disputa eleitoral. Em vez de alimentar sua base, a hostilidade de Trump em relação às pessoas que protestam contra a morte de George Floyd pela polícia e o racismo sistêmico aproximaram aos negros milhões de estadunidenses brancos. Mais da metade dos brancos agora concorda com as ideias expressas pelo movimento Black Lives Matter, e o número de brancos que o apoiam é maior do que os que se opõem a protestos contra a brutalidade policial. Num grau notável, os próprios protestos foram multirraciais.

Como o líder negro John Lewis, o grande herói dos direitos civis que morreu na sexta-feira (17), aos oitenta anos, disse no mês passado perto de onde Trump e William Barr, o procurador-geral, armaram a polícia federal com equipamento antimotim e gás lacrimogêneo para reprimir manifestantes pacíficos: “Senhor Presidente, o povo americano … tem o direito de protestar. Você não pode parar o povo com todas as forças que você pode ter ao seu comando.

Mesmo muitos ex-eleitores de Trump estão chocados com seu racismo, bem como sua miséria moral em geral. Uma pesquisa recente do New York Times / Sienna College, mostrou que mais de 80% das pessoas que votaram em Trump em 2016 não o apoiarão em 2020; acham que ele “não se comporta da maneira que um presidente deve agir” – um opinião compartilhada por 75% dos eleitores. Isso fará toda a diferença em novembro.

Um segundo grande unificador foram os ataques de Trump ao sistema de governo dos EUA. Os estadunidenses não gostam particularmente nem confiam no governo, mas quase todos sentem alguma lealdade à Constituição e ao princípio de que nenhuma pessoa está acima da lei.

A politização do Departamento de Justiça por Trump, ataques ao Estado de Direito, pedidos a outras nações para ajudar a prejudicar seus oponentes políticos e o amor evidente pelos ditadores tiveram um desempenho ruim, mesmo entre os conservadores obstinados.

Integrantes do Partido Republicano pré-Trump, juntamente com republicanos do grupo “Never Trumper” (“Nunca Trump”) que o rejeitaram desde o início, estão se unindo a grupos como eleitores Republicanos contra Trump, Republicanos pelo Estado de Direito, o Projeto Lincoln e 43 ex-alunos de Biden, que inclui ex-funcionários do governo de George W. Bush. O Projeto Lincoln produziu dezenas de anúncios anti-Trump contundentes, muitos deles publicados na Fox News.

O terceiro grande unificador foi a forma catastrófica como Trump agiu na pandemia. Muitos que podem ter perdoado os defeitos de sua personalidade e os impulsos autoritários não conseguem tolerar seus tropeços em relação à crise de saúde pública que ameaça suas vidas e entes queridos.

Em uma pesquisa divulgada na semana passada, 62% disseram que Trump estava “prejudicando em vez de ajudar” os esforços para combater o Covid-19. Um total de 78% dos que o apoiaram em 2016 não votam em Trump novamente, desaprovam o tratamento da pandemia. Eleitores de estados como Texas, Flórida e Arizona – que agora sentem o peso do vírus – afirma que não votarão novamente em Trump.

Embora as razões para ingressar na coalizão anti-Trump tenham pouco a ver com Joe Biden, o desafiante de Trump, o democrata ainda pode se tornar um presidente mudancista. Isso é menos por causa de suas próprias habilidades do que porque Trump preparou os EUA para a transformação.

A analogia tentadora é a eleição de 1932, em meio a outro conjunto de crises. O público mal conhecia Franklin D. Roosevelt, a quem os críticos chamavam de aristocrata sem uma proposta coerente de como acabar com a Grande Depressão. Mas, após quatro anos de Herbert Hoover, os EUA estavam tão desesperados por uma liderança consequente que estavam ansiosos para apoiar Roosevelt e seguir sua orientação.

Ainda faltam mais de 100 dias para o dia das eleições, e muitas coisas podem atrapalhar a coalizão anti-Trump emergente: impedimentos à votação durante a pandemia, invasão estrangeira a máquinas eleitorais, esforços republicanos para suprimir votos, peculiaridades do colégio eleitoral, sujeiras trumpianas e truques, e seu provável desafio a qualquer derrota eleitoral.

No entanto, mesmo agora, a amplitude da coalizão anti-Trump é um testemunho da notável capacidade de Donald Trump de inspirar repulsa.

Fonte: The Guardian