Maria Lúcia Refinetti Martins diz que a lei de saneamento básico vai na contramão da Constituição, desconsiderando aspectos importantes da urbanização brasileira em assentamentos populares.

Os estados da Amazônia enfrentam o desafio de oferecer saneamento a moradores que chegam às novas cidades. Desde 2014, o Acre realiza um amplo projeto de saneamento básico nos municípios​​ de Santa Rosa do Purus, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Jordão. O Proser, desde 2014 conduzido pelo Depasa e Seplan, investe R$ 100 milhões em distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, pavimentação, drenagem, coleta e destinação de lixo nesses municípios de difícil acesso, com recursos do Banco Mundial e governo do Estado. Foto: Arison Jardim/SecomAcre

O saneamento básico no Brasil teve um grande salto entre 1970 e 1990 durante o período do Planasa – Plano Nacional de Saneamento, que organizava o BNH (Banco Nacional de Habitação) e encerrou suas operações em 1986. Vale lembrar que, em 1970, a população era metade urbana e a outra metade era rural, bem diferente do Brasil nas últimas décadas, onde 90% da população está em cidades com grandes adensamentos.

Apenas em 2003, com a criação do Ministério das Cidades, é que o assunto saneamento voltou a ser incentivado com o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento). Recentemente se viu um grande processo de privatização nos setores de energia e telecomunicações, fato que não ocorreu com o saneamento básico, justamente por não ser um serviço federal, mas uma atribuição municipal.

Para a arquiteta e urbanista Maria Lúcia Refinetti Martins, professora titular do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e pesquisadora do LabHab (Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos), há uma inconstitucionalidade na lei de privatização anunciada pelo governo.

Maria Lúcia critica os pressupostos adotados pela nova lei, que vão na contramão de vários princípios da Constituição, pois desconsideram aspectos importantes da urbanização brasileira, das formas de assentamento popular, e não aponta para qualquer garantia de que a meta seja atendida. “Inclusive, porque controles e sanções aos contratos que não cumprirem a meta, não estão definidos. Entre eles, a própria metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira da empresa que for contratada, que será regulamentado por decreto do Poder Executivo. Isso, de início, já traz insegurança”. Em função dessa brecha, diversas cidades brasileiras voltaram atrás na privatização, como Itu e Manaus, por exemplo.

 
Assentamento popular em município amazônico, com estrutura de saneamento básico completa oferecendo qualidade de vida aos novos moradores. Foto: Pedro Devani/SecomAcre

O Brasil é um dos países que passou de uma situação rural para uma situação urbana das mais aceleradas do planeta. Esse assentamento foi sendo feito nas cidades de forma muito precária. Praticamente todos os assentamentos populares, toda a forma de acesso ao lugar de moradia na cidade, foi informal. “Essa ocupação foi sendo feita nos lugares impróprios, ao longo da beira dos córregos, junto dos mananciais, nas áreas ambientalmente mais sensíveis. Como essas áreas estavam fora do mercado, porque são regulamentadas e protegidas por lei, foi o espaço ocupado pela população de menor renda. Só para se ter ideia da urbanização desenfreada, na cidade de são Paulo, nas áreas de mananciais que são protegidas por lei, existem mais de dois milhões de pessoas morando”, explica ela.

Na questão do pacto federativo, Maria Lúcia diz que há algo complicado a ser entendido. Na Constituição, estão definidas formas de articulação de municípios que são as regiões metropolitanas, as aglomerações urbanas e as microrregiões. “Essa nova proposta cria outro formato de bloco, a região metropolitana que é mantida, mas acrescenta a unidade regional de saneamento básico e o bloco de referência. Então fica aí uma situação bastante complexa que cria novas formas de associação, que não são as já criadas pela Constituição, que passam ao largo da maneira de agregação pela lei dos consórcios e também não acompanha a delimitação das bacias que foi o sistema criado para gestão dos recursos hídricos”, ressalta a urbanista. Para ela, isso cria um quadro de difícil constituição, porque a base de funcionamento dessas articulações é bastante frágil.

A questão da gestão do serviço é justamente onde entra o debate sobre os limites das prefeituras. O que está sendo proposto pela lei, é a concessão que é feita por licitação. A arquiteta tem dúvida sobre o desafio das prefeituras de redigirem os documentos. “Será que os municípios terão essa capacidade de formular licitações com termos tão precisos e detalhados que evitem a desqualificação do produto? Ou que empresas jogando o preço lá pra baixo, não deem conta de atender aos serviços? Eu acho que a gente tem no país inúmeros exemplos de situações do gênero, onde, numa licitação, são apresentadas condições que depois se mostram infactíveis. A empresa não dá conta de fazer e acaba sendo substituída”, questiona.

A questão dos resíduos sólidos também é bastante importante, quando se trata de água e esgoto. A lei propõe o encerramento dos lixões até 2024. Para a urbanista da Faculdade de Arquitetura da USP, não adianta criar regras se não houver o envolvimento de toda sociedade.

“É bom lembrar que proibir e estabelecer coisas, não resolve. É necessário um programa, uma política, recursos, e no caso dos resíduos sólidos, mais do que nada, a necessária redução da produção de resíduos, de lixo, e a reciclagem. Porque se a produção do lixo não for controlada, não se conseguir reduzir, ter reaproveitamento, o custo dos aterros, o custo ambiental, e o conjunto de dificuldades só se ampliam. Então, neste quesito, se inclui também o tema do envolvimento da sociedade, tanto das empresas, por exemplo, na redução de embalagens, como da população, no sentido da redução da produção de resíduos sólidos”, afirma.

A importância da estruturação de serviço de água e esgoto, e reciclagem de lixo, estão totalmente interligadas para melhor qualidade de vida de todos. A arquiteta ressalta que é preciso um olhar especial para assentamentos urbanos e sugere a criação de uma espécie de “conselho tutelar” para fiscalizar a infraestrutura do saneamento.

“Há necessidade de uma tecnologia que atenda os assentamentos populares das grandes cidades. E nesse caso, entra mais participação, mais engenharia social, do que uma tecnologia pesada, mais gente e menos concreto. Para isso, é preciso ter um acolhimento da população em que a comunidade se sinta reconhecida e parte desses processos de implantação, e, inclusive, com uma perspectiva que se tenha, assim como existe conselho tutelar da criança e do adolescente, uma forma de conselhos tutelares da infraestrutura da água, do esgoto, da drenagem e dos espaços públicos onde esses equipamentos estão instalados”, sugeriu.

Edição de entrevista à Rádio USP.