A Ideia em Um Segundo
Os problemas do momento têm vida própria, mas relacionam-se a movimentos profundos da sociedade brasileira. A discussão de questões de base – como o modelo econômico nacional, a deterioração do ambiente político, o papel da Constituição Federal de 1988 e as mudanças culturais contemporâneas – ajudam a iluminar o encaixe e a extensão da crise atual nas linhas de força do Brasil histórico.
Por vezes, necessitamos elevar a vista por sobre os problemas cotidianos e tentar captar movimentos maiores. Não há dúvidas que o Brasil de 2021 imerge em um conjunto de crises: saúde pública, social, econômica e política. Aqui neste Farol, como em toda a imprensa responsável, aponta-se com frequência a irresponsabilidade e inconsequência do governo Bolsonaro.
Contudo, para além do caos momentâneo, é preciso identificar e compreender elementos mais profundos e por isso determinantes das nossas possibilidades e escolhas. A música triste que hoje ouvimos advém, para além da conjuntura, de um quarteto de questões estruturais: a crise não resolvida do modelo de substituição de importações na economia; as exigências da Constituição Federal de 1988; a deterioração da política nacional; e a novidade não compreendida da sociedade plural.
A Crise Inacabada do Modelo de Substituição de Importações

Esse processo transformou o Estado em proprietário de muitas empresas e produtor de mercadorias, financiador do mercado privado e agente de proteção contra importações – via tarifas e política cambial. Pulando por cima de infinitos pontos importantes, pode-se dizer que o modelo funcionou satisfatoriamente até os anos 1970.
Desde então, devido às necessidades de desenvolvimento tecnológico, problemas fiscais, entulho regulatório e inflação, o modelo deixou de produzir resultados como crescimento estável, preços sob controle e competitividade.
Collor e FHC avançaram na desmontagem do modelo, seguindo em parte o que ficou conhecido como “Consenso de Washington”, um conjunto de medidas de retração do Estado e garantia de estabilidade fiscal, cambial etc. Em outras palavras, idealizaram um Estado que sobretudo garantisse o funcionamento do mercado (obviamente sem contar com as crises que a própria desregulação trouxe, como a de 2008).
Lula e Dilma, ao financiarem os campeões nacionais, criarem mais estatais e não avançarem na desregulação, trouxeram novamente energia ao modelo de substituição de importações, que desaguou na crise de 2015 em diante.

O problema que vivemos hoje mostra-se assim complexo. Num momento em que o mundo pandêmico repensa o papel do Estado, ainda pagamos o preço de um estatismo que nos deixou inchados com subsídios governamentais e flácidos com empresas que não responderam em termos de resultados. Igualmente ruim, não fizemos o “enxugamento dos sonhos” liberal cortando despesas ineficientes na máquina. Bolsonaro boia entre dois mundos antagônicos que exigem definição. Pior que um modelo ruim, contudo, é sua inação e o sem rumo de seus comandados.
A CF 88 e Suas Exigências

O Estado brasileiro, secularmente presa do patrimonialismo e do clientelismo, viu-se desafiado a suprir serviços para um contingente enorme de pessoas. O que se tem assistido desde então é uma mescla altamente heterogênea de movimentos e situações. Alguns novos serviços inovadores, criação de movimentos sociais variados, manutenção de injustiças antigas, ineficiência em vários setores, transparência aqui, obscuridade acolá etc.

Nosso dilema neste campo é que um Estado que não abandona seus vícios nunca alcança velocidade e qualidade de prestação de serviços adequadas, e em tempos de vacas magras a desigualdade brasileira trava o atendimento ao que é mais prioritário, qual seja, a prestação de serviços aos mais vulneráveis.
Para o momento atual o que se vê, embora muito tímido, é um governo que pensa em reformar sistemas sociais como disse o presidente, “tirando do pobre para dar ao miserável” – já que os antigos vícios seguem intocados -, ou a construção de espantalhos e inimigos de ocasião. O que nos falta, neste caso, é uma abrangente visão de reforma do Estado que honre a CF 88, e não uma que a condene.
A Deterioração da Política Nacional

Esse grupo sem enraizamento institucional e social para além de práticas clientelísticas ou sectarismos religiosos atua como um grande mantenedor do status quo. A notícia do gasto não transparente de bilhões em equipamentos agrícolas superfaturados dá mostra exemplar do que significam a manutenção de um modus operandi e de uma natureza atrasada de política.
Tal grupo foi de certa forma conduzido no período de FHC e Lula-Dilma. A partir do impeachment, contudo, passou a dar as cartas e isso tornou o sistema político ainda menos incisivo e atuante em relação a reformas e mudanças estruturais.
Bolsonaro, com sua aproximação subserviente ao Centrão, seu desinteresse e sua incapacidade em conduzir negociações política complexas, estiola todas as possibilidades de mudança positiva. As variáveis de ajuste, como já se está vendo em abundância, são o orçamento federal pilhado e tentativas de desmonte de institucionalidades importantes como as regras eleitorais de fim de coligação e cláusula de barreira, as quais poderiam trazer um pouco de melhora ao sistema.
A Novidade Não Compreendida da Sociedade Plural

Diante de uma sociedade historicamente pobre, e que assistiu com a crise gestada entre 2009 e 2015 a um refluxo de sua “classe média emergente”, o ressentimento aflora e precisa ser canalizado. Soma-se a isso a criminalidade crescente e a praga das drogas e do tráfico.
Tem-se assim então um falso antagonismo. Políticos demagogos, estímulo a valores tradicionais, falta de educação de qualidade e o ressentimento de parte da sociedade unem-se para apontar as mudanças sociais como causas para uma possível “deterioração moral” e prática das comunidades e das pessoas. Escapam às partes que pobreza e falta de emprego se resolvem com educação e crescimento econômico de qualidade, criminalidade, com políticas públicas – e não sentenças de morte imediatas – e que as mudanças vieram para ficar. Não se pode destruí-las sem destruir junto as pessoas que as portam.
A guerra cultural movida por Bolsonaro contra a modernidade, no seu sonho de regredir o Brasil 50 anos na história, apenas faz o país patinar sem solução num dilema que precisa – além de mais emprego e educação – de diálogo e compreensão.
Salvadores da pátria miram em causas simples, não devemos esquecer. A compreensão do dilema brasileiro, posto na atualidade mas com os pés metidos na história, deve nos servir como fundamento de uma esperança realista.
Termômetro
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O Farol Político é produzido pelos cientistas políticos e economistas André Sathler e Ricardo de João Braga e pelo jornalista Sylvio Costa. Edição: Edson Sardinha. Design: Vinícius Souza.
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Fonte: CONGRESSO EM FOCO