OPINIÃO

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Ganhou manchetes a disputa entre a rede de supermercados Carrefour, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos e uma série de reguladores da Administração Pública em razão de um aplicativo de score nutricional de produtos criado pela empresa.

De um lado, o argumento formulado pela referida rede de que tal classificação seria favorável aos consumidores, os quais, em virtude desse aplicativo, seriam melhor informados a fim de fazerem melhores escolhas nutricionais; de um outro lado, a crítica à violação das normas sanitárias brasileiras — dado que o sistema do Carrefour estaria adequado à legislação francesa de sua sede, mas não aos padrões desenvolvidos pela Anvisa e que estão em via de serem atualizados após longa consulta pública [1].

Além disso, o aplicativo violaria também regras de regulação econômica — tanto do ponto de vista consumerista de induzir o consumidor a erros ou ao consumo de produtos da própria rede, e feriria aspectos concorrenciais, uma vez que a rede Carrefour estaria criando barreiras à entrada de seus concorrentes.

O debate traz questões relevantes do ponto de vista regulatório econômico, as quais merecem uma reflexão cuidadosa.

Ora, é verdade que a Constituição Federal e a própria Lei de Liberdade Econômica (LLE) garantem a livre iniciativa ao Carrefour de conduzir sua atividade econômica como bem lhe aprouver; e essa liberdade implica também liberdade publicitária de ofertar os produtos (inclusive os seus) dentro de sua esfera de escolhas.

De outra parte, também não devemos esquecer que essa liberdade encontra limites na própria Constituição Federal — especialmente nos artigos 170 e seguintes, que tratam da ordem econômica — e nas Leis de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) e na Lei da Concorrência, assim como na própria regulação sanitária promovida pela Anvisa.

Pois bem. Uma rede de supermercados que tenha poder de mercado, como é o caso do Carrefour, pode influenciar os comportamentos dos agentes econômicos (firmas e consumidores) sem ser necessariamente por eles influenciada ou pressionada. Vale dizer, estamos diante de uma situação de falha de mercado, em que precisamos ter uma atenção regulatória para eventualmente corrigir essas falhas, a fim de que os comportamentos de todos os agentes econômicos sejam orientados à melhora do bem-estar dos consumidores e das firmas.

Iniciativas corporativas de melhora do ambiente competitivo fazem todo o sentido e devem mesmo ser estimuladas por governos. Todavia, não se está diante aqui de um modelo de autorregulação promovida pelo setor supermercadista. Fosse um sistema de classificação com a participação de todos os concorrentes e feito por entidade independente que teria o papel de "certificador" dessa classificação nutricional, outra poderia ser a consequência — mas, no caso vertente, é o próprio agente econômico, com poder de mercado, que cria e impõe o seu sistema, ao arrepio da regulação estatal.

Do ponto de vista consumerista, há evidente risco de confusão aos consumidores. Primeiro, eles não têm participação nesse sistema criado pela própria empresa, com critérios absolutamente distintos daqueles previstos pela legislação brasileira. Nem podem contar com o controle dos concorrentes em um ambiente competitivo ou pelo menos de autorregulação. Assim, como poderão os consumidores acreditar em uma classificação nutricional de um agente econômico com poder de mercado, presumivelmente auto interessado no resultado?

Nesse sentido, o Forum Nacional das Entidades Civis de Defesa dos Consumidores informa que participará da discussão pública sobre o tema, divergindo inicialmente (ao que se tem notícia) da atuação precipitada da Proteste, entidade de defesa do consumidor que ficou isolada — pelo menos nesse momento — na defesa dessa plataforma (talvez por ter sede na Europa e não compreender bem a legislação brasileira, ainda que se reconheça aqui sua boa intenção).

A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) interveio e proferiu, corretamente, uma decisão provisória, a fim de obstar a colocação desse sistema nutricional pelo Carrefour e ainda deu notícia ao Cade da prática com potencial anticoncorrencial (processo SEI nº 08084.004271/2021-04).

O Cade será em breve instado também a se pronunciar sobre o assunto pela Associação Brasileira de Liberdade Econômica, tendo em vista o eventual risco concorrencial, derivado dessa atuação do Carrefour, que pressiona no mercado up stream pequenos varejistas e também no mercado downstream, ou seja, daqueles fornecedores do hipermercado em tela que teriam seus produtos classificados nutricionalmente e que precisam concorrer com os produtos da marca Carrefour.

A discussão merece amadurecimento de ideias e de dados. Por ora, parece mais cauteloso aguardar o desfecho do caso na Senacon, no Cade e na Anvisa antes de permitir a criação unilateral de um sistema com muito risco ao mercado. Consumidores não precisam ser tutelados por grandes empresas; precisam tomar decisões informadas com nudges criados por governos ou por autorregulação.

 é advogado, doutor em Direito e professor da FGV-SP.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2021-out-18/opiniao-paternalismo-corporativo-ou-abuso-poder-economico