OPINIÃO

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O Supremo Tribunal Federal decide nesta sexta-feira (18/2) se a Defensoria Pública deve manter seu poder de requisitar informações e documentos às autoridades públicas. Termina o julgamento, em Plenário Virtual, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.852, uma das 22 que formam o pacote da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra a instituição. Até o momento, há dois votos favoráveis ao órgão: do relator, ministro Edson Fachin, e do ministro Alexandre de Moraes, que o seguiu após pedido de vista.

A manobra da PGR tem o potencial de colapsar o funcionamento da Defensoria. Afinal, a prerrogativa de requisição está totalmente inserida na dinâmica da instituição, cujo público-alvo é a população e as coletividades em situação de extrema insegurança social, afligidas por diversos fatores de vulnerabilidade. Um enorme abismo as separa da Justiça e a Defensoria Pública busca reduzi-lo, assegurando-se o acesso à Justiça.

O atendimento desse órgão autônomo tem uma realidade muito particular. Geralmente, recebe pessoas extremamente vulnerabilizadas, com direitos violados e demandas de aspecto existencial. São causas com baixa expressão econômica, mas igualmente complexas e relacionadas a fatores de marginalização que devem ser superados.

Há, em regra, enormes dificuldades no atendimento, que se iniciam pela comunicação por parte dos assistidos, passando pela narrativa da violação de direito e se intensifica no levantamento das provas para embasar o processo. Esses obstáculos são explicados por todos os fatores de vulnerabilidade que afligem, ordinariamente, a pessoa hipossuficiente. Diferentemente da clientela da advocacia privada e do "cliente" da advocacia pública (o Estado), os assistidos da Defensoria encontram uma série de barreiras que demandam abordagens especiais.

E é nesse ponto que entra o poder de requisição. É preciso haver ferramentas que possibilitem o atendimento, a compreensão, a análise e a instrução do caso minimamente eficientes em prol dos mais necessitados. Como uma pessoa em situação de rua, muitas vezes sem ter nem sequer o documento de identidade, pode pleitear um direito perante o Poder Judiciário se não tem as mínimas condições de apresentar um caso devidamente preparado para ser apreciado? Como pessoas que não tiveram a oportunidade de se alfabetizar e não têm recursos para se locomover podem, por conta própria, trazer à Defensoria todas as informações e documentos necessários para preparar a sua ação?

Hoje, elas contam com uma Defensoria Pública dotada de prerrogativas que suprimem essas contingências, possibilitando, por meio do poder de requisição, que todos os documentos e dados necessários cheguem ao defensor ou à defensora que lhe assegurará o acesso ao Poder Judiciário. Isso quando a questão, por meio da requisição defensorial, não for resolvida já no âmbito extrajudicial.

A prerrogativa é um instrumento de trabalho, um poder necessário para realizar sua função institucional. Não confere nenhuma vantagem processual, nem desequilibra a relação com a advocacia. Tanto é assim que, apesar da suposta preocupação da PGR com a isonomia, não foi a advocacia que questionou a prerrogativa em comento.

Ao contrário, o poder de requisição é justamente o que concretiza o valor da igualdade em favor de quem é mais necessitado e não pode pagar um advogado. Somente com uma Defensoria Pública dotada de tal prerrogativa que essas pessoas podem ter uma assistência jurídica igualmente qualificada e eficiente, apta a promover e provocar mudanças sociais por meio de reivindicações perante a Justiça.

E se a Defensoria perde o poder de requisição? Se isso ocorrer, as pessoas assistidas terão ainda mais dificuldades para garantir seu direito de acesso à Justiça, e, provavelmente, algumas serão alijadas do Poder Judiciário ao desistir do processo, devido à enorme burocracia que sucederá a partir de então.

Além disso, o número de ações judiciais da Defensoria aumentará substancialmente. Sem o poder de requisição, a solução será propor, na maioria dos atendimentos, uma "ação preparatória" somente para obter informações sobre a viabilidade da demanda. Certamente não interessa a ninguém aumentar o volume de ações que ingressam no Poder Judiciário.

Apenas a Defensoria Pública da União (DPU), em 2021, com só 640 membros, realizou mais de 1,8 milhão de atendimentos, o que, potencialmente, pode redundar em 1,8 milhão de ações preparatórias, além dos processos nos quais se pleiteará, efetivamente, o direito afirmado. Vale acrescentar que somente em 2020 a DPU conseguiu, por meio do poder de requisição, obter aproximadamente 40 mil resoluções extrajudiciais de litígios, prestigiando o princípio da solução amigável (artigo 3º, CPC).

Por fim, é bom lembrar que a Advocacia-Geral da União (AGU) tem o poder de requisição (artigo 4º, Lei 9.028/95) regulado de forma muito mais pormenorizada, inclusive com definição de sanção em caso de descumprimento.

Enfim, por qualquer lado que se olhe, a prerrogativa da Defensoria Pública é consentânea com o nosso sistema de Justiça. Mas temos a esperança de que os ministros do Supremo Tribunal Federal, atentos à realidade socioeconômica brasileira e ao sentido que a Constituição Federal deu à Defensoria, de promotora de direitos humanos e de cidadania, fará justiça em favor não apenas de uma instituição, mas, principalmente, daqueles por ela assistidos.

Eduardo Kassuga é presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef) e pós-graduado em Ciências Penais.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-fev-18/kassuga-risco-colapso-institucional-defensoria-publica