Na procura pelo filho, mãe passou mais de três anos entrando em fazendas e garimpos
Situação de trabalho escravo em São Fidelis, no interior do Rio de Janeiro - Rafael Moraes / Agência O Globo
Pureza Lopes Loiola vai ser tema de filme. A sua saga à procura do filho Abel, que sumira aos 19 anos, de Bacabal, a 246 quilômetros de São Luís, no Maranhão, inspira o filme que vai levar seu nome. Ainda morando no mesmo local de onde partiu para procurar o filho em 1993, “revirando as fazendas e matas do Maranhão e Pará”, Pureza lembra os piores momentos da viagem que parecia sem fim e que a levou a flagrar repetidas situações de exploração brutal do trabalhador. A história de Pureza foi contada no domingo pela colunista do GLOBO Dorrit Harazim.
— Quando entrei na fazenda (na cidade de Santa Luzia-MA, a primeira que visitou à procura do filho), vi dois moreninhos e doeu meu o coração quando vi o estado da moradia. Via os mais velhos como se fossem meu pai e meu avô e os mais jovens como meus filhos. Esperei poder sair com vida dali (havia jagunços armados) para denunciar aquilo tudo — conta Pureza.
E foi assim a vida de Pureza naqueles três anos. Via as condições degradantes de trabalho, que deixaram de ser consideradas para se caracterizar trabalho escravo, por meio de portaria do Ministério do Trabalho editada este mês. Agora, o auditor fiscal só poderá autuar pelo crime onde houver também cerceamento de liberdade.
— Toda a fazenda que tinha trabalho escravo, eu denunciava. Eles eram tratados como bicho, pior do que porco, que a gente trata bem para vender. Tinham malária e eram deixados lá. Bebiam a mesma água do gado. Viviam debaixo de lonas. Comiam feijão duro, arroz e, às vezes, tripa de porco.
Ela conta que as foices para derrubada de árvores eram pagas, e caras, pelos operários.
— Uma foice custava R$ 50. O pobre trabalhava a vida inteira e não tinha um tostão.
As denúncias começaram na Pastoral da Terra, em São Luís. Mas ganharam a capital federal. Escreveu para os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco. Informou à Polícia Federal e ao Ministério do Trabalho sobre suas descobertas:
— Vieram para cá, mas disseram que não acharam um escravo sequer. Tentei achar socorro para os trabalhadores, mas me foi negado.
No seu périplo, que passava pelos hotéis que abrigavam os trabalhadores aliciados por “gatos”, os vigias dos trabalhadores, o mais difícil era o fim do dia:
— O momento mais difícil era às 18h. Muitas vezes, não tinha onde passar a noite.
O filho Abel soube da peregrinação da mãe e conseguiu escrever para informar onde estava. Fugindo dos “gatos”, ele perdeu os documentos e ficou perdido na mata, até terminar num garimpo.
— Um colega do garimpo falou para ele que tinha uma mulher procurando o filho. Mandamos dinheiro e os documentos, e ele voltou.
Hoje, Abel mora com a mãe.
Em 1997, Pureza foi premiada pela mais antiga ONG internacional de combate ao trabalho escravo, a Anti-Slavery Internation, pela luta por um trabalho decente:
— Gostei de conhecer aquelas cidades, Londres, Bruxelas. Lá, entreguei tudo o que eu vi, como era o Brasil, como vivia o mais pobre.
Atualmente com 75 anos, ela não estava a par das mudanças na legislação, mas diz que ainda há trabalho escravo:
— Sinto que ainda tem trabalho escravo nas matas. Vejo os aviões, que parecem pássaros saindo de dentro da mata. Tenho certeza que vão deixar dois ou três para tiração (extração de madeiras nas matas).
O filme sobre Pureza começa a ser rodado em 2018, segundo o cineasta Renato Barbiere. O acervo acumulado por ela levou à realização de outro filme, o documentário “Servidão”, que está sendo montado.
Fonte: O Globo, 24 de outubro de 2017