OPINIÃO

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Recentemente, foi veiculado na imprensa reportagem em que se questionava conduta de determinada candidata a deputada federal pelo estado de São Paulo, a qual se apresentava nas redes sociais como presidente de sindicato policial — conduta que, no entender dos jornalistas que subscrevem o texto, seria vedada, já que dirigentes sindicais seriam inelegíveis caso não viessem a se desincompatibilizar (afastar-se do cargo) em, no mínimo, quatro meses antes das eleições [1].

A priori, importante esclarecer que a inelegibilidade constitui situação impeditiva do exercício da cidadania passiva. Trata-se de situação que se configura ante a existência de alguma circunstância que a Constituição ou lei complementar estabelece como sendo fator que impede o indivíduo de lançar-se candidato a cargo eletivo. Em outras palavras, impede o cidadão de ser votado em pleito democrático.

As causas de inelegibilidade assentam-se, basicamente, em dois fundamentos: o primeiro deles seria resguardar a democracia contra o abuso de poder, ao passo que o segundo seria proteger a probidade na gestão da coisa pública. Nesse sentido caminha o artigo 14, § 9º, da Constituição, ao dispor que lei complementar "estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta".

Exemplo do primeiro caso colhe-se no artigo 1º, inciso II, alínea a, item 1, da Lei Complementar nº 64/1990, que dispõe ser inelegível para presidente e vice-presidente da República ministro de Estado que não se tenha afastado definitivamente do cargo em, no mínimo, seis meses antes das eleições. A ideia do dispositivo é evitar que o cargo público venha a ser utilizado como instrumento de campanha, o que poderia resultar em desequilíbrio na corrida eleitoral e, em última análise, em prejuízo à própria democracia.

Exemplo do segundo caso colhe-se no artigo 1º, inciso I, alínea e, item 1, da já citada Lei Complementar nº 64/1990, que dispõe ser inelegível, desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena, o condenado pelos crimes, entre outros, contra a administração pública. O dispositivo assenta-se na ideia de que pessoas condenadas por determinados crimes não se revestiriam de idoneidade moral suficiente para lidar com a gestão da coisa pública, ao menos não antes de passados oito anos desde o cumprimento da reprimenda.

A questão relativa aos dirigentes sindicais enquadra-se no primeiro caso, qual seja, o da proteção à democracia. Conforme prevê o artigo 1º, inciso II, alínea g, da Lei Complementar nº 64/1990, são inelegíveis "os que tenham, dentro dos 4 (quatro) meses anteriores ao pleito, ocupado cargo ou função de direção, administração ou representação em entidades representativas de classe, mantidas, total ou parcialmente, por contribuições impostas pelo poder público ou com recursos arrecadados e repassados pela Previdência Social".

O primeiro ponto a se observar é que a necessidade de desincompatibilização não alcança os dirigentes de todo e qualquer sindicato, mas apenas daqueles que são mantidos, total ou parcialmente, ou a) com contribuições impostas pelo poder público ou b) com recursos arrecadados e repassados pela Previdência Social.

O propósito do dispositivo seria, em resumo, evitar que candidatos a cargos eletivos venham a utilizar recursos de origem pública para desenvolver ações e projetos, no âmbito da classe representada, que possam significar autopromoção pessoal. Em outros termos, a finalidade da referida disposição seria coibir a utilização de recursos com origem pública para satisfazer propósitos eleitoreiros, circunstância que tenderia a desequilibrar a disputa eleitoral em manifesto prejuízo à democracia. Assim, não havendo utilização de recursos com origem pública, não há sentido em exigir-se desincompatibilização do dirigente de entidade de classe.

Portanto, em face da literalidade e da finalidade do disposto no artigo 1º, inciso II, alínea g, da Lei Complementar nº 64/1990, não há se falar em desincompatibilização obrigatória para todo e qualquer dirigente de entidade de classe, mas apenas e tão somente para aqueles que dirigem entidades mantidas, total ou parcialmente, por contribuições impostas pelo Poder Público ou com recursos arrecadados e repassados pela Previdência Social. Como exemplo desse tipo de entidade, têm-se os Conselhos Regionais de Corretores de Imóveis, que são mantidos pelas anuidades — consideradas taxas do ponto de vista tributário —, impostas pela Lei Federal nº 6.530/1978.

Em relação aos sindicatos, é importante observar que, com o advento da reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), as contribuições sindicais perderam seu caráter tributário, haja vista terem-se tornado facultativas. A partir da reforma trabalhista, o desconto das contribuições sindicais ficou condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria profissional (artigo 579 da CLT). Em síntese, não há mais imposição legal (compulsoriedade). Agora o recolhimento da contribuição sindical por parte do empregador fica condicionado à prévia e expressa autorização do empregado, ou seja, tornou-se facultativa.

Nisso, rememore-se que a LC nº 64/1990 exige desincompatibilização apenas na circunstância de a entidade de classe ser mantida, total ou parcialmente, por contribuições impostas pelo Poder Público. Aqui cabe uma breve digressão semântica. Imposto consiste em adjetivo que qualifica aquilo "que se impôs". Impor, por seu turno, traduz a ideia de "tornar obrigatório ou indispensável". Em suma, é o mesmo que forçar. Quanto ao substantivo imposição, trata-se da "ação de impor, de obrigar alguém a fazer algo" ou ainda da "ordem a que se tem que obedecer" [2]. Destaque-se, ainda, que imposição tem relação semântica de antonímia com liberdade, escolha, opção [3].

Dessa forma, a mera previsão legal quanto ao recolhimento (facultativo, opcional, voluntário) de contribuição sindical, por si só, não induz a necessidade de desincompatibilização por parte dos dirigentes sindicais, porquanto a LC nº 64/1990 restringe a cidadania passiva apenas em relação a dirigentes que atuam em entidades de classe mantida, total ou parcialmente, com recursos impostos pelo poder público. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral abona esse entendimento, assentando que as contribuições de caráter voluntário não atraem a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso II, alínea g, da LC nº 64/1990 [4].

Portanto, cumpre concluir que o simples fato de dirigir entidade sindical não induz, por si só, a necessidade de desincompatibilização, pelo que esse fator não constituiria um impeditivo a que a candidata mencionada na reportagem do jornal venha a concorrer legitimamente a cargo eletivo, salvo se — e somente se — o seu sindicato, por alguma razão, seja mantido, total ou parcialmente, com recursos impostos pelo poder público ou arrecadados e repassados pela Previdência Social.

O raciocínio ampara não apenas sindicatos, sobre os quais a controvérsia se afigura mais evidente em razão da antiga obrigatoriedade da contribuição sindical: abarca também associações civis, as quais são bastante comuns em termos de agremiar categorias de servidores públicos, por exemplo. Não havendo, por parte dessas associações, o percebimento de verbas públicas para seu funcionamento, inexistem impeditivos legais para que seus dirigentes empunhem candidaturas sem se desvincularem de sua posição associativa.

A direção de entidades de classe como sindicatos e associações civis envolve, no âmbito das relações de trabalho, inequívoca representatividade e atuação política desses dirigentes. Nada mais justo do que, respeitadas as restrições legais, permitir-se a essas cidadãs e cidadãos que levem toda sua experiência e legitimidade enquanto representantes classistas para o âmbito das discussões maiores que envolvem a arena política nacional.

[2] HOUAISS, Antônio. Minidicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 409.

[3] Disponível em: https://www.antonimos.com.br/imposicao/. Acesso em 30/8/2022.

[4] "A norma estabelece a obrigatoriedade de desincompatibilização dos dirigentes de entidades de classe mantidas, total ou parcialmente, por contribuições impostas pelo Poder Público. Na espécie, como não mais existe o caráter compulsório das contribuições — na linha do que decidiu a Corte de origem —, não há falar em violação legal, uma vez que as contribuições de caráter voluntário não atraem o óbice a que se refere a alínea g do inciso II do art. 1º da LC 64/90." (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 060047380, acórdão, relator(a) min. Sergio Silveira Banhos, publicação: DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 161, Data 23/8/2022)

 é advogado, sócio e coordenador da área de relações governamentais do escritório Malta Advogados, bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduado em Direito Público pela Escola da Magistratura do Distrito Federal (Esma-DF).

Revista Consultor Jurídico,

https://www.conjur.com.br/2022-set-14/matheus-cunha-desincompatibilizacao-dirigente-sindical