DIRETO DO CARF

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Noutra oportunidade foi dito (aqui) ser "a tributação da Participação nos Lucros e nos Resultados (PLR) temática das mais calorosas e instigantes discussões ocorridas no seio da 2ª Seção de Julgamento do Carf". Nada tardou para que a assertiva fosse confirmada: passados meros 21 dias da publicação da coluna dedicada à PLR, a Câmara Superior de Recursos Fiscais [1], por determinação do artigo 19-E, da Lei nº 10.522, de 2002, acrescido pelo artigo 28, da Lei nº 13.988, de 2020, em face do empate no julgamento [regra de desempate pró-contribuinte], deu abrupta guinada em sua pacificada jurisprudência.

Em precedentes proferidos no ano de 2021, prevaleceu, na Câmara Superior, por maioria de votos [2], o entendimento de que os valores pagos aos administradores (diretores não empregados) a título de participação nos lucros estariam sujeitos à incidência de contribuições previdenciárias. Noutros tantos, prolatados antes do retromencionado marco temporal, pelo voto de qualidade, sagrava-se a tese vencedora [3].

A Carta de 1988 é pródiga em contemplar uma série de normas referentes aos direitos sociais do trabalhador, sendo a participação nos lucros ou resultados, desvinculada da remuneração, uma delas — ex vi do inciso XI do artigo 7º. Sempre prudente lembrar que tais direitos fundamentais albergam não só uma proibição de intervenção, mas ainda uma vedação da proteção insuficiente. Daí porque certo afirmar que a "Constituição procurou estabelecer limites ao poder de conformação do legislador e dos próprios contratantes na conformação do contrato de trabalho. O constituinte definiu a estrutura básica do modelo jurídico da relação de emprego com efeitos diretos sobre cada situação concreta. A disciplina normativa mostra-se apta, em muitos casos, a constituir direito subjetivo do empregado em face do empregador, ainda que, em algumas configurações, a matéria venha a ser objeto de legislação específica" [4].

Para determinar se a verba paga a título de PLR aos administradores (diretores não empregados) deverá ser (ou não) desvinculada da remuneração é imperioso perquirir se estes estariam inseridos no conceito de trabalhadores, contido no caput do artigo 7º da CRFB/88.

Os que entendem estar diretores não empregados abarcados no dispositivo, afastando-se do entendimento historicamente prevalecente no Carf, o fazem sob o argumento de que "[n]ão quis, o Constituinte, diferenciar os trabalhadores. Podemos assim inferir, pois quando optou por identificar determinados trabalhadores, a Carta Fundamental assim o fez, como se pode observar no inciso XXXIV e parágrafo único, ambos do mesmo artigo 7º acima, que se referem especificamente ao trabalhador avulso, que teve seus direitos equiparados; e ao doméstico, que na redação original da Carta, os teve diminuídos" [5].

Rechaçam ainda a alegação de que a utilização do termo "empregado", tanto no caput do artigo 2º quanto no do artigo 3º da Lei nº 10.101/2000, que traz os requisitos para a validade da PLR, teria restringido o direito à participação nos lucros e resultados dos administradores (diretores não empregados). Isso porque, "o uso do vocábulo empregado se constituiu um pressuposto lógico, pois o dispositivo constante do artigo 2º trata da participação do sindicato na elaboração do plano, e o do artigo 3º versa sobre a integração da verba paga a título de PLR na remuneração e nos reflexos trabalhistas que só existem para o empregado" [6].

Lembram, por derradeiro, que, "numa interpretação teleológica, (...) o contribuinte individual, por exemplo, o diretor, contribui também com seu labor para o atingimento das metas e resultados da empresa. Subtrair tal benefício dessa categoria é discriminar alguém que, em regra, não sendo detentor do capital, só possui o trabalho para obter renda e sustentar sua família" [7].

O inciso II do artigo 150 da CRFB/88 veda a instituição de "tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos". Amparados pela doutrina de PAULO DE BARROS DE CARVALHO, esclarecido que "[q]uando a estimativa 'igualdade' é empregada em direito tributário, o critério é bem objetivo: dois sujeitos de direito que apresentarem sinais de riqueza expressos no mesmo padrão monetário haverão de sofrer a tributação em proporções absolutamente iguais" [8].

Concluem que "a interpretação deve ser realizada evitando-se antinomias constitucionais e mais, ampliando-se o gozo de direitos constitucionalmente esculpidos" [9].

Noutro giro, os que se filiam ao entendimento predominante do Carf, dizem não haver "qualquer inconstitucionalidade a distinguir trabalhadores em razão de sua ocupação ou função, mas sim de aplicação plena do princípio da legalidade, diferenciando os desiguais na medida da desigualdade, em observância ao primado dos direitos sociais tal como insculpidos em sede constitucional" [10].

O positivismo jurídico, ainda muito presente na doutrina e jurisprudência tributária brasileira, demonstra forte apego aos princípios atrelados à segurança jurídica, relegando a segundo plano questões atinentes à justiça e aos direitos humanos. Quiçá, por isso, bradado que desigualdades devem ser sempre repelidas. Entretanto, a desigualdade "que encontre fundamento razoável na justiça, na segurança ou na liberdade não é privilégio odioso nem discriminação, senão que exibe a natureza e o status de privilégio legítimo, plenamente permitido e até garantido pela Constituição" [11].

Sob uma perspectiva histórica, teve o inciso II do artigo 150 da CRFB/88 o "objetivo imediato de coarctar os abusos da legislação ordinária editada ao tempo do regime autoritário, que beneficiava exclusivamente os magistrados, parlamentares e militares" [12] — isto é, classes que diuturnamente recebem tratamento preferencial, o que não seria o caso da classe trabalhadora.

Assim, em sentido diametralmente oposto ao defendido no recente acórdão da Câmara Superior, com arrimo nas lições de CANOTILHO e VITAL MOREIRA, pontuam que "os direitos dos trabalhadores explicitados nos incisos do art. 7º da CF não contemplam sem restrições, todos os trabalhadores. A quase totalidade deles, tais como o décimo terceiro salário e a licença-paternidade é voltada aos trabalhadores com vínculo de subordinação, sem que seja sequer cogitada 'discriminação' pelos não alcançados pelas normas ali contidas, como profissionais liberais, para citar-se apenas um dentre os vários exemplos possíveis" [13].

O caput do art. 2º da Lei nº 10.101/2000 prescreve que, para que seja o plano considerado hígido, "será objeto de negociação entre a empresa e seus empregados". Sendo impossível uma espécie de "autonegociação", questionam os defensores da corrente hegemônica "como defender que o diretor estatutário, representante do poder da empresa que subordina, poderia participar de negociação sob as vestes simultâneas de empregador/empregado (trabalhador ou empregado em sentido amplo, caso assim se admita) [14]?"

Em arremate, lembrado que "[a] participação dos administradores de uma companhia no seu lucro, prevista na Lei nº 6.404, de 1976, não se confunde com a participação dos empregados nos lucros/resultados da empresa, prevista na Lei nº 10.101, de 2000, trata-se de legislações distintas" [15]. A primeira é restrita aos administradores das sociedades anônimas, ao passo que a segunda é devida pelas empresas a todos os seus empregados.

Nos termos do artigo 152 da Lei nº 6.404/1976, "[a] assembleia-geral fixará o montante global ou individual da remuneração dos administradores, inclusive benefícios de qualquer natureza e verbas de representação, tendo em conta suas responsabilidades, o tempo dedicado às suas funções, sua competência e reputação profissional e o valor dos seus serviços no mercado". Isso significa que a participação nos lucros é forma de remuneração pelo trabalho.

Como não poderia deixar de ser, em nenhuma parte de seu texto tratou a retromencionada lei da tributação das contribuições previdenciárias em relação a remuneração dos segurados contribuintes individuais — categoria na qual estão inseridos os administradores (diretores não empregados) — por parte das empresas, "e nem o poderia fazer, pois a instituição e o regramento de contribuições para a seguridade social requer lei ordinária específica, competência essa exercida pela União com a edição da Lei nº 8.212/91" [16].

Segundo o Regimento Interno do Carf, são de observância obrigatória os enunciados de súmula aprovados pela sua Câmara Superior — ex vi do artigo 72 —, bem como as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática dos recursos repetitivos — ex vi do § 2º do artigo 62. Embora os precedentes da Câmara Superior não sejam vinculantes às conselheiras e aos conselheiros do Tribunal Administrativo, sua importância não pode ser negligenciada, eis que lhe outorgado o importante mister de uniformizar a jurisprudência do Carf.

Somente o tempo dirá se estamos diante de o fim de uma era ou se o acachapante entendimento — de que a PLR paga a administradores (diretores não empregados) integra a base de cálculo das contribuições sociais previdenciárias — há de prevalecer.Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] CARF. Acórdão nº 9202-010.354, cons. rel. MARCELO MILTON DA SILVA RISSO, redator designado cons. CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA, sessão de 24 de ago. de 2022 (desempate pró-contribuinte). Até a publicação desta coluna, não constava o acórdão no repositório de jurisprudência do Carf. Pode, entretanto, ser consultada a ata (processo nº 16682.720290/2014-23) em: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/SessoesJulgamento/Atas/consultarAtas.jsf.

[2] CARF. Acórdão nº 9202-010.029, cons. rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, redator designado cons. MARCELO MILTON DA SILVA RISSO, sessão de 31 out. 2021 (por maioria); CARF. Acórdão nº 9202-009.925, cons. rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, sessão de 23 de set. de 2021 (por maioria).

[3] CARF. Acórdão nº 9202-008.338, cons. rel. MARIA HELENA COTTA CARDOZO, sessão de 20 de nov. de 2019 (voto de qualidade); CARF. Acórdão nº 9202-007.607, cons. rel. ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA VIEIRA, sessão de 26 fev. 2019 (voto de qualidade); CARF. Acórdão nº 9202-007.870, cons. rel. ANA PAULA FERNANDES, redator designado cons. MÁRIO PEREIRA DE PINHO FILHO, sessão de 22 maio de 2019 (voto de qualidade).

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva Educação, 2018 [e-book].

[5] CARF. Acórdão nº 2201-003.370, cons. rel. CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA, sessão de 18 de jan. de 2017 (unanimidade). A mesma ratio decidendi é extraída do recente precedente da Câmara Superior que constitui ponto de inflexão na sua jurisprudência, cf.: CARF. Acórdão nº 9202-010.354, cons. rel. MARCELO MILTON DA SILVA RISSO, redator designado cons. CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA, sessão de 24 de ago. de 2022 (desempate pró-contribuinte).

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Citação direta extraída da obra Direito Tributário: Linguagem e Método em CARF. Acórdão nº 2201-003.370, cons. rel. CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA, sessão de 18 de jan. de 2017 (unanimidade).

[10] CARF. Acórdão nº 2201-005.188, cons. rel. RONNIE SOARES ANDERSON, sessão de 08 de maio de 2019 (por maioria). Registro que acórdãos da Câmara Superior valem-se do entendimento externado no precedente da 2ª Turma da 2ª Câmara da 2ª Seção, replicando-o em sua integralidade em: CARF. Acórdão nº 9202-008.338, cons. rel. MARIA HELENA COTTA CARDOZO, sessão de 20 de nov. de 2019 (voto de qualidade); CARF. Acórdão nº 9202-008.356, cons. rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, redator designado cons. MAURÍCIO NOGUEIRA RIGHETTI, sessão de 20 de nov. de 2019 (voto de qualidade). Em sentido similar, aponta RICARDO LOBO TORRES que "[o] aspecto mais intrincado da igualdade se relaciona com a sua polaridade . Enquanto nos outros valores (justiça, segurança, liberdade) a polaridade significa o momento da sua negação (injustiça, insegurança, falta de liberdade), na igualdade o seu oposto não a nega, senão que muitas vezes a afirma. Aí está o paradoxo da igualdade. A desigualdade nem sempre é contrária à igualdade, como definiu brilhantemente Rui Barbosa: 'A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade'". (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário – Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 341/342.

[11] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário – Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 357. Mais adiante, explica ainda que "a 'discriminação reversa' ou 'discriminação positiva', também chamada de 'tratamento compensatório', isto é, a desigualdade cometida contra os ricos e as pessoas que se encontram em condições econômicas, sociais ou intelectuais melhores, como resultado da proteção concedida aos pobres e aos fracos, torna-se plenamente constitucional. Impõe-se proteger as pessoas contra desigualdades fortemente arraigadas na sociedade e contra a injustiça global. In dubio pro operario. Os negros, com curta história de liberdade e longa escravidão e pobreza, e as mulheres, até hoje inferiorizadas no mercado de trabalho, por exemplo, merecem o tratamento diferenciado". Ibid., p. 418.

[12] Ibid., p. 391.

[13] CARF. Acórdão nº 2201-005.188, Cons. Rel. RONNIE SOARES ANDERSON, sessão de 08 de maio de 2019 (por maioria).

[14] Idem.

[15] CARF. Acórdão nº 9202-010.258, Cons.ª Rel.ª MARIA HELENA COTTA CARDOZO, sessão de 14 de dez. de 2021 (por maioria).

[16] CARF. Acórdão nº 2201-005.188, Cons. Rel. RONNIE SOARES ANDERSON, sessão de 08 de maio de 2019 (por maioria).



 é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-nov-16/direto-carf-trabalhadores-art-cf-plr-diretor-nao-empregado