CONTAS À VISTA

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O controle das despesas com pessoal ativo e inativo tem sido –direta ou indiretamente– um dos temas mais debatidos ao longo deste ano, seja no âmbito da proposta de reforma previdenciária (PEC 06/2019), seja por força do agravamento[1] das contas públicas em todos os níveis da federação.

Vale lembrar, nesse sentido, que o Supremo Tribunal Federal havia retomado –na semana passada– o julgamento sobre diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, entre eles, a hipótese prevista no art. 23, §§ 1º e 2º de redução proporcional de salários e carga horária dos servidores públicos estáveis, para fins de recondução da despesa de pessoal aos seus respectivos limites.

A despeito de o julgamento haver sido suspenso[2] e como a maioria dos ministros do STF formou entendimento no sentido de que é inconstitucional o ajuste previsto pela LRF, o governo federal e o presidente da Câmara dos Deputados já avaliam declaradamente[3] tratar a hipótese em sede de proposta de emenda à Constituição.

Diante da incapacidade de controle da produtividade mínima dos servidores (como debatemos aquie até mesmo da desobediência deliberada aos limites formais dados pela LRF com a conivência de muitos Tribunais de Contas (algo que evidenciamos), o horizonte de resolução estrutural do descontrole do gasto de pessoal parece distante.

Obviamente, se houvesse solução fácil e rápida para um problema antigo e complexo como esse, certamente ela já teria sido aviada. Atualmente, de novo, apenas há a existência de muitas frentes de reflexão mobilizadas em busca de prognósticos mais sofisticados e minimamente resolutivos para o esforço de aprimoramento da gestão de pessoal na Administração Pública brasileira.

No intuito de nos somarmos a esse esforço, ainda que de forma tópica e muito residual, aqui pretendemos lançar luzes sobre um problema pouco debatido, mas suficientemente volumoso e temerário para as contas públicas e, sobretudo, para a conformidade constitucional da gestão dos empregados públicos que atuam na Administração Direta, Autárquica e Fundacional em pequenos Municípios.

Referimo-nos especificamente à questionável alegação de um suposto direito de permanecer em atividade no emprego público, após a aposentadoria junto ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que tem sido cada vez mais demandada em juízo por servidores celetistas vinculados aos entes políticos e/ou suas autarquias e fundações.

Ora, em pequenos Municípios que adotaram o regime celetista para fins de simplificação da gestão do regime próprio de previdência, na medida em que a sujeição ao RGPS seria automática, a pretensão dos servidores celetistas aposentados de se manterem em atividade no emprego público afronta não só o art. 37 da Constituição, como também constrange o equilíbrio intertemporal nas contas públicas.

Para explicar a celeuma em torno da manutenção do contrato de emprego público com a pessoa jurídica de direito público ou com as fundações estatais, após a aposentadoria do empregado, é primordial fazermos uma retomada histórica dos julgamentos que envolvem o tema.

O berço da controvérsia reside no art. 453, §1º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), declarado inconstitucional pelo STF na ADI 1.770-4. O referido parágrafo tinha o seguinte texto: “Na aposentadoria espontânea de empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista é permitida sua readmissão desde que atendidos aos requisitos constantes do art. 37, inciso XVI, da Constituição, e condicionada à prestação de concurso público.

Ao declará-lo inconstitucional, o STF o fez considerando dois argumentos: (1) que o dispositivo permitia, como regra, a acumulação de proventos e vencimentos, vedada pela jurisprudência da Suprema Corte brasileira e também (2) que a norma se fundava na ideia de que a aposentadoria espontânea rompe o vínculo empregatício[4]. Especificamente em relação a esse segundo argumento, vale explicar que ele se consubstanciou no entendimento extraído da ADI 1.721-3, que declarou a inconstitucionalidade do art. 453, § 2º, CLT.

Nesse ponto, é bom esclarecer que o citado parágrafo tinha a seguinte redação: “o ato de concessão de benefício de aposentadoria a empregado que não tiver completado 35 (trinta e cinco) anos de serviço, se homem, ou trinta, se mulher, importa em extinção do vínculo empregatício”.

Ao analisar esse § 2º do art. 453 da CLT, o Ministro relator Carlos Ayres Britto deixou expresso que “o ordenamento constitucional não autoriza o legislador ordinário a criar modalidade de rompimento automático do vínculo de emprego, em desfavor do trabalhador, na situação em que este apenas exercita o seu direito de aposentadoria espontânea, sem cometer deslize algum”. E, com base nesse raciocínio, concluiu que “a mera concessão da aposentadoria voluntária ao trabalhador não tem por efeito extinguir, instantânea e automaticamente, o seu vínculo de emprego” (ADI 1.721, rel. min. Ayres Britto, j. 11-10-2006, P, DJ de 29-6-2007)[5].

Todavia, alertamos, de plano, que o caso examinado na ADI 1.721-3 se referiu tão somente ao trabalhador da iniciativa privada, sem alcançar o empregado público das pessoas jurídicas de direito público ou fundações estatais de natureza autárquica. Tal constatação é passível de ser verificada, com clareza, à luz da própria fundamentação decisória adotada pelo Ministro Ayres Britto.

Aliás, seria francamente inconstitucional estender seus efeitos para os empregados públicos que atuam na Administração Direta, Autárquica e Fundacional, porque esses se sujeitam fortemente ao comando do art. 37 da Constituição, que resguarda – em favor da sociedade – o dever de realização do concurso público e limites objetivos de provimento e vacância da função pública desempenhada.

A própria Justiça do Trabalho, em diversas turmas do TST, conforme é possível visualizar nas ementas abaixo, fixou o alcance universal da aposentadoria compulsória para todos os servidores públicos (incluídos os celetistas), em leitura ampliada do art. 40, §1º, II da Constituição:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. SERVIDOR PÚBLICO CELETISTA. A decisão do Regional está em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, de que o empregado público celetista se submete à aposentadoria compulsória prevista no art. 40, § 1º, II, da CF. Nesse contexto, o empregado público, ao completar 70 anos de idade, autoriza o empregador a dispensá-lo, sem que se configure a hipótese de dispensa injusta, muito menos tratamento discriminatório. Além disso, por se tratar de regular extinção do contrato de trabalho autorizada por lei, resta também indevida a reintegração ou mesmo o pagamento de aviso prévio, multa de 40% do FGTS e multas dos arts. 467 e 477 da CLT. Precedentes. Óbice da Súmula nº 333 do TST e do artigo 896, § 7º, da CLT.
Agravo de instrumento conhecido e não provido (AIRR-11262-22.2017.5.18.0002, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 15/03/2019). (grifamos)
AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. EMPREGADO PÚBLICO. Esta Corte firmou o entendimento no sentido de que aaposentadoria compulsória de que trata o art. 40, § 1º, II, da CF é também aplicável empregado público . Pacificado o entendimento acerca da matéria, no âmbito desta Corte, resta superado o confronto jurisprudencial e afastada, ainda, as violações indicadas, a teor da orientação expressa na Súmula nº 333 do TST. Agravo a que se nega provimento (Ag-AIRR-11521-58.2015.5.18.0011, 5ª Turma, Relator Ministro Emmanoel Pereira, DEJT 23/11/2018). (grifamos).

Em raciocínio extremado, caso houvesse o suposto direito de permanecer na atividade laboral, após a aposentadoria, para os empregados públicos, eles estariam no gozo de uma espécie tergiversadora e abusiva de vínculo vitalício, ampliando a repercussão da estabilidade do art. 41 da Constituição de 1988 para depois da aposentadoria.

Aliás, é sintomática a adoção tão somente das regras do regime estatutário que beneficiam aos empregados públicos, mas – naquilo que a Constituição e as leis impõem limites e restrições aos servidores estatutários – a Justiça do Trabalho caminha em sentido contraditoriamente inverso para seletivamente negar sua vigência em relação aos servidores celetistas.

Ora, se a Justiça do Trabalho usualmente invoca a estabilidade do citado art. 41 da CF (que literalmente se refere apenas aos cargos públicos) para os empregados públicos, também é imperativa a sujeição aos limites temporais de vigência do vínculo laboral, já que a passagem para a inatividade do servidor público pressupõe teleologicamente vacância da função (seja ela cargo ou emprego público).

O servidor celetista das pessoas jurídicas de direito público e das fundações autárquicas não pode se furtar ao concurso público após a sua aposentadoria, porque sua permanência no emprego público afronta o direito de todos os demais cidadãos de pretenderem impessoal acesso àquela função pública, além de onerar – desproporcional e desarrazoadamente – o erário.

É preciso, com ênfase, resgatarmos a premissa de que o caráter híbrido do regime jurídico dos servidores celetistas da Administração Direta, Autárquica e Fundacional reclama interpretação sistemática e íntegra da Constituição, sob pena de prevalência casuística e, por vezes, até mesmo patrimonialista do interesse privado do empregado público em face do erário.

O problema foi que o STF, ao fazer menção à ADI 1.721-3, no momento do julgamento da inconstitucionalidade do art. 453, §1º, CLT (ADI 1.770-4), deu ensejo a diversos equívocos de interpretação por parte da Justiça do Trabalho, que desaguaram na narrativa míope de que aposentadoria espontânea não romperia o vínculo empregatício mantido entre Estado e empregado público, ainda que se tratasse de pessoa jurídica de direito público (entes políticos e autarquias) ou fundação estatal de natureza autárquica. Ao nosso sentir, tal posição enviesada viola frontalmente o art. 37, II da CF/88.

Além disso, mesmo que fosse possível sustentar essa corrente interpretativa, da alusão feita pelo STF à ADI 1.721-3, no momento da análise da ADI 1.770-4, que o contrato de trabalho de empregado público não se extingue com a aposentadoria, isso não autorizaria sua extensão ao empregado público da Administração Direta, Autárquica e Fundacional, pois o citado art. 453, §1º, CLT, estrita e expressamente se referia apenas aos empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista (pessoas jurídicas de direito privado com finalidade lucrativa).

Dando continuidade à sequência cronológica de fatos e teses em impasse hermenêutico, ressaltamos que, considerando as decisões do STF, o colendo Tribunal Superior do Trabalho (TST) resolveu cancelar a OJ-SDI1-177, que tratava dos efeitos da aposentadoria espontânea, dispondo que “a aposentadoria espontânea extingue o contrato de trabalho, mesmo quando o empregado continua a trabalhar na empresa após a concessão do benefício previdenciário. Assim sendo, indevida a multa de 40% do FGTS em relação ao período anterior à aposentadoria[6].

Com base nesse cancelamento, a jurisprudência abraçou o posicionamento de que “a aposentadoria espontânea não é causa de extinção do contrato de trabalho se o empregado permanece prestando serviços ao empregador após a jubilação. Assim, por ocasião da sua dispensa imotivada, o empregado tem direito à multa de 40% do FGTS sobre a totalidade dos depósitos efetuados no curso do pacto laboral” (OJ-SDI1-361, TST).[7]

Contudo, estender a previsão contida na OJ 361 da SD1 do TST aos empregados públicos da Administração Direta, Autárquica e Fundacional não só viola diversas normas da Constituição, como também traz consigo severo risco de dano ao erário, haja vista a repercussão do ônus de recolhimento de encargos patronais e a própria sanção pecuniária a inibir a dispensa imotivada do empregado público já aposentado.

A vacância do cargo público com a aposentadoria é decorrência lógica do ingresso na inatividade e está disposta no art. 33, VII da Lei 8.112/1990 para os servidores estatutários da União. Repercutir uma visão tipicamente privada para os servidores celetistas da Administração Direta, Autárquica e Fundacional é estender a duração do vínculo jurídico para além da sua razoável concepção e finalidade constitucional.

Em tempos de necessária contenção da despesa de pessoal em todos os níveis da federação e diante da premente necessidade de ampliar a produtividade dos servidores públicos, é absolutamente desarrazoada a manutenção do vínculo empregatício com servidores celetistas aposentados, os quais invocam uma leitura reducionista do ordenamento jurídico em detrimento do erário.

A passagem para a inatividade pressupõe uma tendência natural de menor capacidade laborativa em termos proporcionais, seja porque o servidor conta com idade avançada, seja porque a aposentadoria denota desejo de redução dos encargos profissionais por parte do empregado. Nesse contexto, soa, no mínimo, contraditória (e um tanto patrimonialista) a escolha pela continuidade do vínculo, apenas para majorar a renda do empregado público aposentado, diante da negligenciada necessidade de aprovação em concurso público para cada novo liame funcional estável com o Estado.

Ninguém pode querer apenas os bônus da relação com o Estado, sem se sujeitar aos ônus do regime jurídico que impõe à Administração Pública, em primeira dimensão, obediência aos princípios da impessoalidade, finalidade, eficiência e preservação do erário, entre outros. Cabe, pois, desnudar com clareza que a continuidade dos vínculos empregatícios de servidores celetistas aposentados da Administração Direta, Autárquica e Fundacional não atende aos ditames constitucionais e tende, no limite, a fomentar a apropriação privada do interesse público e o agravamento das contas públicas.


[1] Como se pode ler em https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/08/13/governo-diz-que-lrf-nao-freou-gastos-com-pessoal-nos-estados-e-defende-conselho-de-gestao-fiscal.ghtmlhttps://oglobo.globo.com/economia/doze-estados-estouram-limite-de-gastos-com-pessoal-previsto-em-lei-23875911https://www.poder360.com.br/economia/para-uniao-calculo-de-pessoal-dos-estados-contribuiu-para-crise-fiscal/ e https://static.poder360.com.br/2019/08/nota-estados-LRF-SPE.pdf
[2] Como noticiado em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=421330
[3] Divulgado em https://www.valor.com.br/brasil/6403967/governo-quer-emenda-para-reducao-de-jornada-e-salario e https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,apos-placar-do-stf-maia-diz-que-e-preciso-pensar-em-pec-para-reduzir-salario-de-servidores,70002978558
[4] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=469598
[5] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=393006
[6] http://www.tst.jus.br/documents/10157/63003/Livro-Internet.pdf
[7] http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDI_1/n_s1_361.htm

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 é advogada, professora e mestre em Direito do Trabalho. Doutoranda em Direito pelo Departamento de Direto do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP

Revista Consultor Jurídico