OPINIÃO

Por  e 

A perspectiva de gênero é intrínseca ao Direito do Trabalho, cujo desiderato é exatamente o de assegurar condições de trabalho equitativas, dignas e decentes, independente da raça, do gênero e da classe social da pessoa física titular do direito fundamental ao trabalho, fonte de subsistência própria e familiar. Trabalho decente conceituado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) como o "adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna".

O Direito do Trabalho é permeado pela ideia radical de igualdade. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Para o Estado democrático de Direito, a raiz é a dignidade da pessoa humana.

As primeiras normas trabalhistas, bem como as iniciativas tendentes à sua universalização, visaram limitar a jornada de trabalho das mulheres, além de proibir o trabalho noturno aos menores, conforme preleciona Orlando Gomes: "Nenhum preceito moral ou jurídico impedia o patrão de empregar em larga escala a mão-de-obra feminina e infantil. Os princípios invioláveis do liberalismo econômico e do individualismo jurídico davam-lhe a base ética e jurídica para contratar livremente, no mercado, esta espécie de mercadoria. Os abusos desse liberalismo cedo se fizeram patentes aos olhos de todos, suscitando súplicas, protestos e relatórios em prol de uma intervenção estatal em matéria de trabalho de mulheres e menores" [1].

Cedo ou tarde, o que importa é que se fez patente no seio da comunidade jurídica a importância capital das questões de gênero, mormente na escorreita interpretação e aplicação das normas, para a implementação prática dos direitos sociais. Em especial, no julgamento de demandas trabalhistas relacionadas à violência e ao assédio no meio ambiente, no mundo do trabalho.

Julgar com perspectiva de gênero é nada mais nada menos do que cumprir com a obrigação jurisdicional de aplicar as normas constitucionais e convencionais ao caso concreto.

A começar, pelo artigo 5º, I, da Constituição: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações", conquista histórica do movimento feminista, que implica na eliminação de todas as formas de discriminação.

A discriminação é proibida expressamente no texto constitucional, no artigo 3º, IV. Dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil consta o de  promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A perspectiva de gênero representa um ajuste de foco, fruto da evolução do pensamento jurídico, uma "lente de aumento que facilita a percepção das desigualdades sociais e econômicas entre homens e mulheres, que se deve à discriminação histórica contra as mulheres". (Maria Amélia de Almeida Teles e Monica de Melo).

Trata-se da única forma de combater o machismo institucional que organiza a racionalidade do sistema jurídico brasileiro. É imperativo superar o complexo misógino entranhado na visão de mundo patriarcal, raiz do machismo que autoriza os feminicídios.

Sob esse enfoque o conceito de gênero ultrapassa a dicotomia biológica entre homem e mulher, como sublinhado no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ: "Ao passo que sexo se refere à biologia, gênero se refere à cultura. Quando pensamos em um homem ou em uma mulher, não pensamos apenas em suas características biológicas; pensamos também em uma série de construções sociais, referentes aos papéis socialmente atribuídos aos grupos: gostos, destinos e expectativas quanto a comportamentos".

A ideia é a de desconstruir o naturalizado discurso binário de gênero que atribui às mulheres o papel de cuidadora da família, afeita ao trabalho doméstico e reprodutivo, de que o espaço ocupado pelas mulheres é o privado, e não o público, reservando-se aos homens a destinação prioritária do trabalho produtivo, das funções de maior valor social agregado, em divisão sexual do trabalho nitidamente preconceituosa e desigual.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, apresentado pelo CNJ em outubro de 2021, é  uma nova visão pela efetivação dos direitos humanos e respeito ao gênero, editado com o objetivo de orientar e capacitar a magistratura sobre a questão da igualdade, de servir como um "guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos". Estabelece diretrizes de Política Judiciária para todos os ramos do Judiciário Brasileiro, inclusive à Justiça do Trabalho.

Digno de registro que referido Protocolo é resposta a várias condenações do Brasil no plano internacional, em especial da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no que toca à condução de processos de feminicídio em que a mulher é revitimizada, ou seja, ao tempo em que é vítima do crime relacionado à condição de mulher, tem sua honra atacada com um julgamento cultural oculto de uma sociedade patriarcal.

O caso da vítima Marcia Barbosa, paraibana morta em 1998, é um marco na luta contra a impunidade de feminicídios. O acusado do crime foi o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, que só foi condenado em 2007, nove anos depois.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que a imunidade parlamentar vigente no país provocou um grave atraso no processo e que resultou na violação dos direitos, garantias judiciais e dos princípios de igualdade e de não discriminação em prejuízo do pai e da mãe da vítima. Além disso, verificou que existiu intenção de desvalorizar a vítima utilizando sua vida pessoal e sexualidade como justificativas.

Aliás, não raro verifica-se em processos judiciais envolvendo a figura do assédio sexual a tentativa de menosprezo e ataques à honra da vítima através de argumentação defensiva ou questionamentos vexatórios em sede de instrução, tentando criar uma espécie de figura padrão para permitir-se a atribuição da qualidade de vítima.

Ao correr atrás da defesa de seus direitos a mulher é atacada em sua honra e dignidade. Tem-se um julgamento patriarcal oculto.  

Porém igualmente lesivo, ou até mesmo pior, é a interpretação restritiva do operador do direito que permite a lesão institucionalizada a direitos fundamentais, como é o caso da restrição ao conceito de assédio sexual no sentido de condicionar sua configuração a que o ofensor tenha ascendência hierárquica sobre a vítima ou, em sede processual, praticamente impossibilitar a produção probatória através de uma distribuição do ônus que a ofendida nunca conseguirá se desvencilhar.

Nessa perspectiva apresentada, o documento em apreço trata-se de verdadeira ferramenta para a salvaguarda dos direitos humanos do gênero e abrange a todas as áreas e autoridades do sistema de justiça. E inclusive direciona-se expressamente aos juízes advertindo que não tenham uma visão de cunho patriarcal e desprovida do respeito ao gênero na nobre tarefa de apreciar e julgar as lides adjacentes.

Impõe-se não apenas o respeito ao gênero, mas que através dele, com ele e por ele se analise as violações perpetradas.

O protocolo é articulado na diretriz da materialização dos direitos fundamentais e expresso ao invocar as peculiaridades do crime de assédio sexual e sua configuração no âmbito do contrato de trabalho.

Nesse diapasão, cita expressamente a possibilidade de o assédio sexual configurar-se por ofensor que não tenha ascendência hierárquica. Nesse sentido também a Convenção 190 da OIT.

"Com relação ao assédio sexual no trabalho, vale ponderar que o tipo penal do artigo 216-A, do Código Penal, é mais restrito do que o conceito trabalhista, que se divide em assédio sexual por chantagem e assédio sexual ambiental ou por intimidação. Assim, na lacuna da lei, inclusive da Convenção 190, o conceito apresentado pela Resolução CNJ nº 351/2020, compila ambos os tipos de assédio sexual, reforçando a já consolidada construção doutrinária e jurisprudencial trabalhista sobre o tema, que prescinde do requisito da hierarquia, diferentemente da esfera criminal. Além disso, vale ressaltar que a Convenção de Belém do Pará também tem aplicação nos casos de assédio sexual no trabalho, conforme disposto no artigo 2º, b".

No mundo do trabalho, perpetua-se ainda a denominada "dupla jornada feminina", "ou seja, soma-se às horas de trabalho doméstico, de cuidado ou reprodutivo (não remunerados), as horas do trabalho remunerado, formal ou informal", destacando-se vários aspectos que contribuem para as desigualdades salariais, como o de que "a maternidade ainda é vista como um 'empecilho' ao crescimento profissional da mulher dentro de um mercado de trabalho que não a acolhe e que valora de forma negativa uma condição que lhe é específica (gestação/lactação/maternidade), exigindo da trabalhadora que ela se adapte a espaços e instituições que são estabelecidas a partir do modelo masculino".

A luta contra as injustiças cognitivas de gênero se interliga com as lutas contra o racismo, a homofobia, a precarização do trabalho, a degradação do meio ambiente de trabalho, a devastação da natureza. Como sublinha Eliane Brum [2], "a luta pela floresta é a luta contra o patriarcado, contra o feminicídio, contra o racismo, contra o binarismo de gênero". Aqui abrimos um rápido parênteses apenas para repetir a obviedade de que sem a maior floresta tropical do mundo não há possibilidade de controlar o superaquecimento global, de que, portanto, sem a Amazônia, teremos um futuro hostil. A floresta amazônica é um ativo estratégico para o Brasil, passaporte para o futuro.

À proteção dos direitos fundamentais, econômicos, sociais e culturais, agrega-se a tutela dos direitos ambientais, o bom-combate tanto contra a devastação das florestas, notadamente amazônica, quanto à degradação do meio ambiente de trabalho, com o protagonismo visceral dos valores ecológicos, vitais à qualidade de vida, não apenas dos humanos, mas de todos os seres viventes, e do próprio planeta. 

A visão da floresta como um corpo para violação, exploração e violação sempre predominou o imaginário nacional, permeado pela ideia da dominação da natureza pelo homem. A escolha da palavra "virgem" para se referir à floresta e a outros ecossistemas ainda não totalmente dominados por homens iluminam as relações de poder que determinam a manipulação e a exploração, tanto da florestas, como das mulheres. A antiga associação de mulher e natureza interliga a história das mulheres e a do meio ambiente e é a fonte de um parentesco natural entre feminismo e ecologia que está se manifestando em grau cada vez mais crescente.

Paralelamente ao fato da floresta amazônica estar perigosamente próxima do ponto de não retorno (do momento em que a floresta deixa de ser floresta e já não pode fazer o seu papel de reguladora do clima), sofremos com altos índices de estupros, feminicídios, lesão corporal e assédio sexual, segundo Mapa da Violência de Gênero [3].

Nesse contexto, o mundo do trabalho é marcado por violências de gênero, que naturalizam, por exemplo, o assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, impondo à vítima a obrigação de produzir a prova de suas alegações, mesmo sabendo que o assédio sexual acontece na maioria dos casos na clandestinidade.

O desafio da Justiça do Trabalho é o de encampar a perspectiva de gênero em seus julgamentos, especialmente nos casos de assédio moral e sexual em que a mulher figura como vítima, de se levar em consideração a posição privilegiada dos homens como sujeitos de direitos em uma sociedade patriarcal, assim como a dificuldade de produção de prova nesses casos.

Citamos, a título ilustrativo, ementa de Acórdão proferido pela 15ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região, relatado pelo juiz Marcos Neves Fava (processo nº 1000150-07.2019.5.02.0037):   

"ASSÉDIO SEXUAL. PROVA DOS FATOS. DIFICULDADE. CULTURA OCIDENTAL MACHISTA. CULPA DA VÍTIMA. INIBIÇÃO DO DIREITO DE INSURGÊNCIA. DEPOIMENTO DA VÍTIMA. CIRCUNSTÂNCIAS RAZOÁVEIS. PROVA SUFICIENTE. A submissão da mulher, na sociedade patriarcal ocidental machista, inclui, lamentavelmente, sua exposição mais frequente e iterativa ao assédio sexual. A prática social 'mediana', para não dizer medíocre, ainda reitera padrões de análise e avaliação que desprestigiam a igualdade de gênero e retroalimentam o sistema, para torná-lo ainda mais impermeável à evolução. Prova disso são as observações não incomuns de que a estuprada estava vestida de forma a convidar o estuprador; de que mulher sozinha não devia frequentar tal tipo de estabelecimento, já sabendo o que lhe caberia; ou que a exibição do corpo patrocina a violência. A jurisprudência firme no âmbito penal é a de que o depoimento da vítima, nesse quadro, ostenta caráter de prova. Apurou-se na instrução que (a) a vítima noticiou os fatos assim que ocorreram, no curso do plantão; (b) o ocorrido gerou atitude extrema da vítima, que abandonou o plantão no meio (dia 12/6), alegando que o assediador a estava questionando sobre a mudança de local de trabalho e lhe oferecendo um 'presente'; (c) não há prova do reclamante a demonstrar seu comportamento habitual em desconformidade com a denúncia; e (d) sua linha de argumentação, na sindicância, é culpar a vítima, dizendo que ela confidenciou fatos relacionados ao comportamento sexual (como estar afastada do pai de seu filho) e que ela agiu de forma estranha e sem justificativa, porque ele apenas 'conversou' sobre assuntos diversos e lhe ofereceu companhia para o jantar. Configurada, pois, a prática de assédio. Justa causa mantida. Recurso parcialmente provido".

No combate às violências e discriminações perpetradas contra as mulheres, com vistas à consolidação de uma sociedade igualitária, pluralista e mais democrática, é de fundamental importância a atuação coletiva, organizada e interssecional (ou seja, consideradas também as opressões racial e de classe social) do movimento feminista, um incremento do associativismo, como um todo.

A prevalência da autoafirmação sobre a integração, do individualismo feroz e preconceituoso em detrimento da cooperação e solidarismo, é fruto do pensamento machista, no seio do qual as hierarquias sociais são mantidas de acordo com orientações racistas e sexistas, e a violação a dignidade da pessoa humana constitui-se a metáfora central.

O cooperativismo do mundo vegetal é uma lição da natureza que deve ser assimilada e implementada para a incorporação de valores sem os quais nenhuma sociedade pode ser considerada humana: a cooperação, a solidariedade, o cuidado uns com os outros, a proteção da biodiversidade. Como preleciona Stefano Mancuso, em seu fantástico livro A Planta do Mundo, as árvores que fazem parte da mesma floresta ou de um bosque não estão separadas umas das outras, elas formam, por meio de suas raízes, uma rede subterrânea que as une em uma rede enorme e difusa. As árvores estão ligadas em uma comunidade, uma fraternidade, em regime de partilha perfeita por meio das redes que as unem. Há um sistema radicular de conexão entre as árvores, enormes comunidades conectadas por meio de raízes, que trocam nutrientes, água e informações. Comunidades extensas que, não raro podem até incluir plantas de diferentes espécies que baseiam sua possibilidade de sobrevivência mais na cooperação do que na competição.

Entretanto, prevalece a ideia de que a competição e a luta pela sobrevivência são o motor da evolução. Por mais de um século, com base na obra revolucionária de Charles Darwin, a corrente de pensamento predominante, que forjou nossa ideia do funcionamento das comunidades vivas, foi a de que o motor da evolução é a competição, a luta pela sobrevivência, a vitória do mais forte, com base no mundo animal. Isso, a despeito das descobertas realizadas no mundo vegetal, de que as plantas são as mestras do apoio mútuo sobre a terra, um modelo a ser imitado, vez que a principal força que dá forma à vida é a cooperação entre os seres vivos.


[1]Curso de direito do trabalho. 6ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1976, p.4665.

[2] Banzeiro Ókòtó Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. Companhia das Letras, p. 49

 é ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de SP, conselheiro da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo), especialista em advocacia preventiva e judicial e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Salamanca (ESP).

Elisa Augusta de Souza Tavares é ex-juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região (TRT14), juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), subcoordenadora da Justiça do Trabalho Região Sudeste pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), palestrante, professora convidada de pós-graduação e cursos jurídicos, autora da Editora Juspodium e artigos jurídicos e co-autora obra coordenada pelo ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho "Cinco Anos da Promulgação do CPC e o Processo Laboral".

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-nov-03/parahyba-tavares-perspectivismo-genero-mundo-trabalho